terça-feira, 12 de maio de 2015

Maria Sousa


Podemos cantar uma canção os dois

podemos cantar um canção os dois
a valsa da matilde do waits
a voz do vinagre onde o álcool se transforma em som
algures no nosso oeste
cactos e bagaço
o blue valentine na kentucky avenue
uma lágrima numa longa
noite sem fim
porque esperamos?
não sei
juro que não sei sentada na berma
já tenho doses de noites a
mais
de esquinas e portas
de adeus em adeus
elas não suportam a separação
não choram mais porque secaram
i never talk to strangers
o som da cidade
fica restabelecido e já não tenho horas
o relógio parou
e eu fiz um gesto obsceno
e desapareci


Maria Sousa, in Cadernos de Poesia nº 3, Enfermaria 6, Lisboa, 2015.

Luís Quintais


Ecografia #3

É uma imagem do tempo
desenhando-se, flor, floração,
fértil sombra, alma.
Ecos desfiam o perfil
de Amélia, ombros,
dedos, olhos, encéfalo,
pétalas, sépalas,
sonhos.

Luís Quintais, in Cadernos de Poesia nº 3, Enfermaria 6, Lisboa, 2015.


Gonçalo Mira


 Tríptico
I
Fosses tu um rio e eu
um seixo
lançado por mãos hábeis
para te tocar a pele
uma vez
e outra e outra e outra.
E mergulhar em ti.
II
Ponho as mãos em concha
debaixo da torneira e penso:
Como seria bom que aqui estivesses
e a abrisses.
III


Fosses tu o mar
e eu pedra que submergisse em ti
brotando anéis concêntricos de pequenas vagas
como para te circunscrever
num abraço
inteiro.


Gonçal Mira, in Cadernos de Poesia nº 3, Enfermaria 6, Lisboa, 2015.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

António Pedro Ribeiro


 CONFEITARIA DA CASA

Na “Confeitaria da Casa”
Às cinco da tarde
O poeta pensa
Pensa que há dias
Em que vive noutro mundo
Um mundo fora da vida prática
Do útil
Do dinheiro
Tal como Platão e Aristóteles
O poeta despreza o dinheiro
Acha que a avidez do lucro
Destrói o homem
O poeta pensa
Num grande banquete gratuito
Onde os homens se sentam à mesa
E discutem filosofia e literatura
O poeta pensa em Sócrates e em Jesus
Na bondade, na vontade, na liberdade
O poeta tem tido visões, iluminações
Trilhou o seu próprio caminho
Rumo à noite
Rumo aos bares
E, de vez em quando,
Tem conversas que elevam
Conversas que falam
Da alma, do espírito
Da vida interior
Na “Confeitaria da Casa”
O poeta cansa-se do tédio
Da vida previsível
Que os homens levam
Dos inimigos da vida
Que não nos querem
Deixar viver
Acha-os imbecis
Porque não vêem a flor
Porque não vêem o amor
O poeta é um criador
Tem em si
O belo
O maravilhoso
A divindade
E dança
Ah! Como dança!


António Pedro Ribeiro

domingo, 10 de maio de 2015

O pastor alemão


I.

O pastor alemão veio morar para o centro
onde a releitura do ódio parece a releitura do amor
trouxe na viagem e na língua ainda o sabor das lágrimas de Heidi
elas nunca tocaram o chão —
a meio da queda ele bebia-as
como um limite, doces e citrinas, sabiam a gin tónico com muito limão
o caminho em direção ao centro, a carreira de professor que ensina as estações
o medo vem a seguir ao outono e o desejo a seguir ao inverno
mas os ciclos são interiores: como as estações
a meio da queda o frio congela as lágrimas,
são agora flocos de neve que caem dos olhos de Heidi, parecem estrelas
cobrem os soldadinhos de chumbo de um manto branco.

II.

Despe Sebald… alguém
não é homem nem mulher
— porque os géneros mentem —
a sua cara é feita de traição,
de traição os nervos, o contorno do queixo,
o contorno das orelhas,
de traição os nervos,
o viso, a expressão,
de traição também o vento quente que lhe bate na cara.
Tem um derrame nos olhos por ter visto de mais,
e em todos os glóbulos a febre — vermelha e branca,
branca e branca, como a ficha dos homens que fugiram —
desenha a lápis um fundo onde morar
na expressão um afogamento interior.
Desaparece como personagem, Heidi
no lugar dela, uma memória que acende os olhos
o derrame do centro
para onde a memória foi morar
ele ou ela disfarçada de noite, porque os géneros mentem,
congela na descida,
o cair decidido no chão, rotundo,
os nervos coloridos disfarçados de noite.
  
III.

Puseram uns patins no pónei branco
e empurram-no para cima do lago congelado
os seus movimentos numa dança de susto,
o arfar do potro, o medo preso aos tendões
uma respiração nervosa diz-lhe que sobreviva —
o sangue a correr rápido
com o chão a fugir-lhe por baixo das patas,
o espectador era só um: Toda a Gente.
O desenho que ficou no gelo, as marcas dos patins,
da tração, do espasmo, da dança dos reflexos,
as asas de uma borboleta
no meio de um livro
o último leitor fecha-o,
noutra página um trevo de quatro folhas,
outros amuletos ainda
ganham vida dentro da Montanha Mágica.

IV.

Se nas mãos o mensageiro traz uma vela acesa
e se o mensageiro sofre de insensibilidade motora,
não dá conta que ela lhe queima as mãos
e de arder todo o mensageiro se faz nova mensagem
a expressão feita de muitas somas,
uma sede de novo, foi toda para os olhos,
desenha a linha da vida, o lápis, o pulso, o traço seguro
o fotógrafo da realidade pousa a máquina, sinal de abandono
tem só agora a retina e no branco da parte de trás dos olhos,
as duas asas da borboleta, invertidas,
afogadas na representação da órbita
o colecionador desta realidade faz uma nova cartografia do espaço,
 mas tem de ser ágil, a terra treme e muda muito rápido,
surgem novas penínsulas, novas ilhas, novos medos onde antes era terra,
e ao cartógrafo são exigidos reflexos rápidos,
porque também o mapa lhe foge por baixo das mãos.
o pulso seguro desenha a terra que treme
só a velocidade lhe é permitida, como salvação e nela
a releitura do ódio parece-se com a releitura do amor.
Talvez por isso ele tenha ido morar para o centro.

V.

De todos os frutos se destila o esquecimento
de todos os medos se destila a Crença —
os dentes alinhados transmitem coragem
os nervos tão seguros, os braços a remarem
por canais que abrimos e não se fecham
dos teus olhos destilo uma vontade nova,
todo o desejo, toda a viagem em nova anatomia
a rasgar o universo à escala humana.
A minha obsessão por braços, destilo das tuas mãos o caminho.
Da tua sede a minha sede, da tua língua a minha vigília.


VI.

Na anatomia a minha obsessão por braços
na geografia a minha obsessão por penínsulas:
aquilo que entra
e depois dos braços, as mãos, e depois os dedos
extremidades, pontas que recebem e dão, por isso perecíveis, vulneráveis.
E depois penínsulas cada vez mais finas e estreitas,
paredões, finíssimas línguas de areia que entram pelo mar:
parecem dedos, os faróis,
pescadores solitários com a lancheira ao lado, namorados
aqui nas pontas recebe-se e leva-se para o centro
ali um caminho ou uma artéria fina
em direção ao coração,
ao núcleo
ele pede a sensação que as pontas lhes dão.
As flores roxas fecham-se à noite e as flores amarelas fecham-se à noite.


VII.

Os soldadinhos de chumbo que o pastor alemão deixou no chão
cobertos pelo manto branco da neve que continua ainda a cair
o frio foi todo morar para dentro, nos ossos, nas pontas dos dedos.

Não é só a máquina que filtra mas também os olhos
deles nevam as lágrimas ou as estrelas
e elas voltam a subir para desenhar as nuvens do fundo,
também da queda se faz subida:
já não vertical, mas um espalhar-se contínuo infiltra-se em todo o lado.

Não sei de que ângulo a vi partir
subia
branca era a montanha
um moinho no cimo, um novelo dentro do moinho
um cão a guardar o moinho, um pastor alemão
a cauda a abanar assim que a viu, o riso foi todo para os homens
o resto da natureza ajuda a desenhá-lo
o que vi na tua cara
mais Deus que qualquer outra coisa
mais Criador do que tudo o branco cruza o branco.
Alguém me perguntou: de que falamos desde que nos conhecemos?
Os faróis parecem dedos.

Nuno Brito.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Falarás de todos os que arderam antes de ti.


Escreverás no centro dessa casa.
(com o fogo do coração)
Tudo sublinhado a verde -
Escreverás com a força dos grandes rios.
Com um giz no chão, com uma chave no cimento molhado,
Com um ferro no ladrilho.
Falarás de todos os que arderam antes de ti.
Das crianças, das árvores. Da América.
De como os gregos tinham duas palavras para dizer vida
e de duas irmãs siameses que estão a nascer neste preciso momento
 com um único coração.
De como é impossível separar aquilo que a vida une
com o seu musgo, com a sua argila, com o seu húmus – 
e que partirem faz também parte do milagre.

Falarás de como os guardas florestais gostam de fumar nos cumes mais altos,
de que nenhum fardo é tão pesado se fechas os olhos devagar
 para mergulhar nessa imensidão que te rodeia.
Com a força dos grandes rios
falarás dos que arderam antes de ti.
E os teus olhos verão tudo a nascer.
Tudo a nascer com força...

Nuno Brito.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Carla Diacov

queria sondar o excêntrico intocável através do sangue da fulaninha
queria procriar e queria trucidar com a pressa do passo
lembra?
andávamos
sem a nós nos encontrar
ai meu amor que não chega
ai a melancolia no fundo do prato, anjo  

aquieta essa boca
amanhã alguém morre no samba


Carla Diacov, Amanhã alguém morre no Samba, Lisboa, Douda Correria, 2015.

Carla Diacov

outros experimentos falharam
chorar e seguir com a língua o caminho da lágrima
ralar o cotovelo e seguir com a língua o caminho da gota de sangue
ejacular e seguir com a língua
seguir o fio de sol
feito os trevos do antigamente no jardim
aqui
desde tanto
uma rua vazia e japonesa
minha cabeça é pior que o diabo
pior que o diabo que enfio entre as tábuas
as tábuas
desde que tanto cheguei aqui
é o diabo
melhor que seja
digo
a cor que isso vai tomando
sei que estou viva porque me vejo nos olhos do diabo
sei que respiro
porque o tenho tomando meu hálito
sei nada dos meus medos
porque sua cabeça linda, vermelha, tríplice
guarda noturno sonâmbulo diário crepuscular
ninguém meu amorninguém como nós conhece o sol*
meu diabo
às barbas do meu diabo
suas orelhas amplas
suas marcas nas minhas paredes
nasci para ser umidade cor de concupiscência
pensei
me visto de alçapão e choro
mas estou pelada
mas estou calva
estou feia e fútil
basta
basta quando que sou o alçapão
sou possuída e inquilina
céus
eu sou o alçapão
espia:
o diabo é minha carne pênsil.
* Sebastião Alba


Carla Diacov, Amanhã alguém morre no Samba, Lisboa, Douda Correria, 2015.