quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Eugénio de Andrade: Matéria Solar

 30.

Levei as mãos aos olhos para ver
se mesmo em ruína ainda existias,
mergulhei no sol os dedos todos,
vêm molhados das águas fatigados –
o corpo perdia-se frente aos dias.


Eugénio e Andrade. Matéria Solar. Porto: Limiar, 1980.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Beatriz Hierro Lopes

[Infâmia]

A vadiagem de sino na mão, garrafa cortada e olhos cegos, tronco seco e polido com que bate compassivamente no chão, marcando tempos aos olhares que se desviam ou se fixam nesta marcha de miséria entre vagões no subterrâneo. De olhos fechados, cega vadia, cão vadio, latindo língua de sino, a mais fiel Portuguesa de há quantos séculos: o que deveríamos ter por hino à glória de uma nação enfileirada numa procissão de pernetas, manetas, cegos ou cancerosos, pedintes ou calados. Aos que não se enfileiram: este vagão é sala de espera, e sem que alguém saiba, carrilhão de pequeníssimos gestos, vozes cruas que, no trajecto, curvarão cabeça, corpo e dedos, baloiçando primaveras, verões inteiros entre as margens dos dentes, sem pão que haja além destas palavras de cobre dando pressa ao vagar de deus oculto em cada sinal de emergência. Trago ao peito medalha de prata, sino encabeçado por três rostos de asas pequenas; tenho a língua do ferro, e talvez por isso, talvez só por isso, saiba do cobre e da diferença multicolor entre este e a ferrugem dos ponteiros que ancoram passados à minha boca: o teu, o meu, o nosso. Sou vadia e o mesmo é dizer que nasci do fundo do mar onde naufrágios sepultam o progresso de outras vontades. Não tenho hino, glória ou fidelidade. E se tenho por língua esta língua, é dela o toque, a vibração contra a emergência de haver quem nos salve deste infame orgulho de ser português.


Beatriz Hierro Lopes, [Espartilho], Coimbra, Debout Sur L’Oeuf, 2015.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Até a solidão morre um dia
Por mais que tente não consigo ver o fogo
Com as cervicais expostas e escamas e asas
O dragão pega o crânio pelos colarinhos
Cospe água fria, exige que finja
Que o peso da vida toda é menos do que o de uma pluma
Sete anos a professar um santo amortalhado em setas
A pluma não aguenta o peso da vida
Nem a vida se verte num copo de tinto.
Uma cosmogonia genital de promessas fátuas
Em dores infligidas que em ódio alastram
Cegamente esconjura reflexos, imagens.
Sete anos professados por uma barbatana espelhada
Que traiu a infância numa casa de banho
Sete vezes trezentos e sessenta e cinco despertares lancinantes
Em delírio amamentados.


Leonard Cohen: How to Speak Poetry


Take the word butterfly. To use this word it is not necessary to make the voice weigh less than an ounce or equip it with small dusty wings. It is not necessary to invent a sunny day or a field of daffodils. It is not necessary to be in love, or to be in love with butterflies. The word butterfly is not a real butterfly. There is the word and there is the butterfly. If you confuse these two items people have the right to laugh at you. Do not make so much of the word. Are you trying to suggest that you love butterflies more perfectly than anyone else, or really understand their nature? The word butterfly is merely data. It is not an opportunity for you to hover, soar, befriend flowers, symbolize beauty and frailty, or in any way impersonate a butterfly. Do not act out words. Never act out words. Never try to leave the floor when you talk about flying. Never close your eyes and jerk your head to one side when you talk about death. Do not fix your burning eyes on me when you speak about love. If you want to impress me when you speak about love put your hand in your pocket or under your dress and play with yourself. If ambition and the hunger for applause have driven you to speak about love you should learn how to do it without disgracing yourself or the material.
What is the expression which the age demands? The age demands no expression whatever. We have seen photographs of bereaved Asian mothers. We are not interested in the agony of your fumbled organs. There is nothing you can show on your face that can match the horror of this time. Do not even try. You will only hold yourself up to the scorn of those who have felt things deeply. We have seen newsreels of humans in the extremities of pain and dislocation. Everyone knows you are eating well and are even being paid to stand up there. You are playing to people who have experienced a catastrophe. This should make you very quiet.  Speak the words, convey the data, step aside. Everyone knows you are in pain. You cannot tell the audience everything you know about love in every line of love you speak. Step aside and they will know what you know because you know it already. You have nothing to teach them. You are not more beautiful than they are. You are not wiser. Do not shout at them. Do not force a dry entry. That is bad sex. If you show the lines of your genitals, then deliver what you promise. And remember that people do not really want an acrobat in bed. What is our need? To be close to the natural man, to be close to the natural woman. Do not pretend that you are a beloved singer with a vast loyal audience which has followed the ups and downs of your life to this very moment. The bombs, flame-throwers, and all the shit have destroyed more than just the trees and villages. They have also destroyed the stage. Did you think that your profession would escape the general destruction? There is no more stage. There are no more footlights. You are among the people. Then be modest. Speak the words, convey the data, step aside. Be by yourself. Be in your own room. Do not put yourself on.
This is an interior landscape. It is inside. It is private. Respect the privacy of the material. These pieces were written in silence. The courage of the play is to speak them. The discipline of the play is not to violate them. Let the audience feel your love of privacy even though there is no privacy. Be good whores. The poem is not a slogan. It cannot advertise you. It cannot promote your reputation for sensitivity. You are not a stud. You are not a killer lady. All this junk about the gangsters of love. You are students of discipline. Do not act out the words. The words die when you act them out, they wither, and we are left with nothing but your ambition.
Speak the words with the exact precision with which you would check out a laundry list. Do not become emotional about the lace blouse. Do not get a hard-on when you say panties. Do not get all shivery just because of the towel. The sheets should not provoke a dreamy expression about the eyes. There is no need to weep into the handkerchief. The socks are not there to remind you of strange and distant voyages. It is just your laundry. It is just your clothes. Don't peep through them. Just wear them.
The poem is nothing but information. It is the Constitution of the inner country. If you declaim it and blow it up with noble intentions then you are no better than the politicians whom you despise. You are just someone waving a flag and making the cheapest kind of appeal to a kind of emotional patriotism. Think of the words as science, not as art. They are a report. You are speaking before a meeting of the Explorers' Club of the National Geographic Society. These people know all the risks of mountain climbing. They honour you by taking this for granted. If you rub their faces in it that is an insult to their hospitality. Tell them about the height of the mountain, the equipment you used, be specific about the surfaces and the time it took to scale it. Do not work the audience for gasps ans sighs. If you are worthy of gasps and sighs it will not be from your appreciation of the event but from theirs. It will be in the statistics and not the trembling of the voice or the cutting of the air with your hands. It will be in the data and the quiet organization of your presence.
Avoid the flourish. Do not be afraid to be weak. Do not be ashamed to be tired. You look good when you're tired. You look like you could go on forever. Now come into my arms. You are the image of my beauty.



Leonard Cohen.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Safo



LII. 

Quem é belo é belo de ver, e basta;

mas quem é bom subitamente será belo.


Safo, Poemas e fragmentos de Safo: tradução de Eugénio de Andrade, Porto, Limiar, 1974.



Safo  de Charles Auguste Mengin



Capicua: Soldadinho



Capicua, - Sereia Louca.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Cesário Verde: Flores Velhas



Fui ontem visitar o jardinzinho agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um voo.

Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimados às luzes dos planetas;
A abelha ainda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as virações, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me à memória idílios imortais.

Diziam-me que tu, no flórido passado,
Detinhas sobre mim, ao pé daquelas rosas,
Aquele teu olhar moroso e delicado,
Que fala de langor e de emoções mimosas;

E, ó pálida Clarice, ó alma ardente e pura,
Que não me desgostou nem uma vez sequer,
Eu não sabia haurir do cálix da ventura
O néctar, que nos vem dos mimos da mulher.

Falou-me tudo, tudo, em tons comovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quase irmãs do vento com as flores
E a mole exalação das várzeas rescendentes.

Inda pensei ouvir aquelas coisas mansas
No ninho da afeição criado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das crianças,
E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.

Lembrei-me muito, muito, ó símbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.

E nosso bom romance escrito num desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas de toucar.

Mas tu agora nunca ah! Nunca mais te sentas,
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu não te beijarei, às horas sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados…

Eu, por não ter sabido amar os movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes desalentos
E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.

E tudo enfim passou, passou como uma pena
Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,
E aquela doce vida, aquela vida amena,
Ah! Nunca mais virá, meu lírio, nunca mais!

Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando ontem eu pisei, bem magro e bem curvado,
A areia onde rangia a saia roçagante,
Que foi na minha vida o céu aurirrosado,

Eu tinha tão impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei das suas ilusões
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as asas ir abrindo às minhas impressões.

Soltei com devoção lembranças ainda escravas,
No espaço construi fantásticos castelos,
No tanque debrucei-me em que te debruçavas,
E onde o luar parava os raios amarelos.

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fé, num véu consolador,
O teu divino olhar que as pedras amolece,
E há muito me prendeu nos cárceres do amor.

Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves,
Julguei-os esconder por entre as minhas mãos,
E imaginei ouvir as conversas das aves
As célicas canções dos anjos teus irmãos.

E como na minha alma a luz era uma aurora,
A aragem ao passar parece que me trouxe
O som da tua voz, metálica, sonora,
E o teu perfume forte, o teu perfume doce.

Agonizava o sol gostosa e lentamente,
Um sino que tangia, austero e com vagar,
Vestia de tristeza esta paixão veemente,
Esta doença, enfim, que a morte há-de curar.

E quando me envolveu a noite, noite fria,
Eu trouxe do jardim duas saudades roxas,
E vim a meditar em quem me cerraria,
Depois de eu morrer, as pálpebras já frouxas.

Pois que, minha adorada, eu peço que não creias
Que eu amo esta existência e não lhe queira um fim;
Há tempos que não sinto o sangue pelas veias
E a campa talvez seja afável para mim.

Portanto, eu, que não cedo às atracções do gozo,
Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo,
E ó pálida mulher, de longo olhar piedoso,
Em breve te olharei calado e moribundo.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres,
Só quero abandonar a vida triste e má
Na véspera do dia em que também morreres,
Morreres de pesar por eu não viver já.

E não virás, chorosa, aos rústicos tapetes,
Com lágrimas regar as plantações ruins;
E esperarão por ti, naqueles alegretes,
As dálias a chorar nos braços dos jasmins!



Cesário Verde, in V.A., A Saudade na Poesia Portuguesa: Seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa, Portugália, 1967.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

  
 Tenho estas mãos
Para mudar o mundo
Ou para te sentir os cabelos
O que é a mesma coisa

Tomaz Kim: Elegia



O teu corpo,
uma vez o meu altar e pecado,
O teu corpo
agora amarelo e viscoso,
hostil como a freira enclausurada,
é uma forma obscena ao sol.

Tu estás morta –
tu, o meu pão e vinho santo!

Tu foste
a minha dor,
o sol
            e a chuva;
Tu foste
saudade,
tudo
            e desejo
quando nós
            sofrendo,
quando nós
encontrámos
            uma nova luz
            uma nova fé!

Tu estás morta –
Tu, o meu pão e vinho santo.

V.A., A Saudade na Poesia Portuguesa: Seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa, Portugália, 1967.


Mário Cesariny: Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro


Mário Cesariny: Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão      a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem

 Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Carruagem Imperfeita


De onde é que vem esta necessidade bestial e impotente de comer o mundo?
Os outros homens também sentem isto.
Todos os homens querem de vez em quando comer o mundo

Eu quero todos os homens com os seus erros, as suas falhas e imperfeições...
Quero abraçá-los todos (comer será pedir de mais?) Porquê o afecto ter sempre a ver com a boca? A sede, as mamas, os beijos, Porquê a boca? Porquê todas as bocas? Porquê a boca?
Porquê as palavras?


Nuno Brito.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Macedonio Fernández




Mas peço ao leitor ajuda para não me meter em incidências. Às vezes perde-se a vida num incidente, sendo a vida útil e os incidentes inúteis. Melhor é seguir praticando a longevidade.




Macedonio Fernández, Papéis do Recém-chegado.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Sinfonia Nuclear para dois cravos e uns Búzios


 Que Deus abençoe os que vão dentro do autocarro
E os que vão dentro do metro
E todos os que vão fora do autocarro e fora do metro.


Nuno Brito.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O homem do talho


Tenho o sonho de mudar o mundo... E tenho outros sonhos
Sou sincero Sunny, sou sincero porque acredito em tudo: Acredito na Ciência, na fé, no ocultismo e no homem do talho, sobretudo no homem do talho!
Tenho uma confiança inabalável nesse homem: Sunny: Se soubesses como amo o homem do talho, com todas as minhas forças, não por ele ter um talho e a bata cheia de sangue (se bem que isso ajude)    Mas por ele ser um homem...

Nuno Brito.

Beatriz Hierro Lopes: Do sepultamento dos navios


Tenho uma janela que abre portas para o mundo: o início e o fim da minha avenida. Tenho estas horas de tédio em que me escondo nos punhos dos sobretudos que debaixo da minha janela passam. No punho, junto ao pulso, mais perto do que no peito ou do que no interior da boca, sei do que pensam, do que dizem a si mesmos, das justificações que repetem para calar este desejo de corte. Esta vontade de lâmina.
Somos este tempo e este tempo é da idade dos que vestem sobretudos e suportam o mais longo frio sobre os ombros. De olhar baixo. Voz baixa, rente à terra sobre a qual somos os pontos menores de uma costura que remedeia este ter-se nascido costeiro.
Não somos mais filhos de nossos pais, nem netos ou bisnetos de nossos avós e bisavós, não crescemos à margem da terra que vê partir, que vê chegar, os navios. Somos a memória mais presente do sepultamento da nossa própria História, a três milhas a sudoeste da costa de Portimão em Outubro de dois mil e doze.
Justificamos a noite com a ausência de um caminho. Fazemos trocadilhos com o que caminhou sobre as águas enquanto nós, marés várias, caminhamos sobre praças: uma ou outra vaga marítima lava o rosto às pedras enquanto duas gerações embalam a tristeza com o medo, desviam a revolta com silêncio, sacrificam palavras pela memória de frases não ditas. Somos disto, desta espécie de derrota vestida de negro, óculos redondos e guarda-chuva indiano num tempo em a que só os mortos dão razão. Submersos, respiramos o interior da cor e, o interior da cor, sem luz ou olhos que lhe encontrem salvação; lentos gestos afogados, lentas palavras colhidas do outro lado da trincheira. E nos punhos isto, nos pulsos isto: esta vontade imensa de quebrar. Beber toda esta água, secar o futuro no interior das mãos. Inscrever uma nova cartografia que nos faça costa sem naufrágios nem saudade.

Beatriz Hierro Lopes.

Thomas Pynchon: Celebridade


- Ele disse algum coisa?
- Não.
Absolutamente nada?
O doutor sacudiu a cabeça mecanicamente e agregou uma nova entoação à sua canção fúnebre de todas as tardes. E na realidade não me inclino muito a crer que o fará.
- Nunca?
- Essa é a minha opinião.
- Mas às vezes vocês enganam-se. Não é assim? Quero dizer que às vezes o cancro desaparece sem razão. É certo? – Sim – Admitiu Witt -. E às vezes de repente os cegos começam a ver, os surdos a ouvir e os coxos a caminhar. Os tontos escrevem poemas. Há um prémio novel esperando o idiota que defina a palavra “milagre”.




Thomas Pynchon, Celebridade.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O Desenhador de Sòis


II.

De tudo que eu digo retém a espuma de certas palavras quando chegam
a ti, vê-as misturarem-se umas nas outras, dissolverem-se numa Água Maior,
De tudo o que eu digo retém o movimento, a dissolução, o encontro
com outra coisa, o seu ser já outra coisa. Retém do que digo certa luz,
a certo ângulo, certo riso cheio de criança, de toda a minha poesia quero só
uma mão a escorrer areia, uma janela sempre aberta com muitas plantas no seu
parapeito e um bebedouro de pássaros, de tudo que eu digo retém uma menina
(em frente disso tudo) que escreve a giz no chão entre desenhos de barcos e raios:
Meu deus és feito de puro sol, de sol teus olhos, de sol o mar.
Retém a sua cara por entre a luz
Põe a mão no peito
Este é um começo.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Desenhador de Sòis


IX.

Disponho as fotografias na cortiça,
do centro para as margens, as memórias mais doces,
o conto do canguru voltado ao contrário
ou o postal dos girassóis afixado no centro
É um painel vivo,
um museu eterno dos melhores momentos atesourados, mesmo ao lado de onde escrevo.
Posso alterar a ordem: sobrepor, cruzar, aproximar do centro;
espalho as memórias como uma onda, levo-as pela praia toda,
dissolvo com espuma, levo pelo mar dentro,
a minha memória é como a memória do fogo, a memória do sal,
ou a memória do degelo:
Esqueço como quem guarda os melhores momentos no centro do sol.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Beatriz Hierro Lopes:



da irredutibilidade

A minha família é o meu país, disse-o, despedem-se deles como se fossem para a guerra, como se ir para a guerra fosse sair deste país quando a guerra é ficar cá, continuou. Eu, que a ouvi, pouco sei de guerra. Guerra, para mim, é a voz da minha avó paterna a dizer-me daqueles dias em que o seu país fora uma casca de batata, ao falar-me da Guerra Civil Espanhola. Tão longínqua como qualquer outra. O meu país, a minha Cidade, não são cascas de batata ou a metade da cebola ou limão guardada no frigorífico. Gosto de pensar que a nacionalidade não é um electrodoméstico. Um mecanismo que serve à utilidade. Não é útil ser-se português. Imagino que nunca o tenha sido. Assim como creio que também não é útil ser-se espanhol, italiano ou grego.
Há mais de trezentos anos que a minha família materna nasce e morre no Porto. Não lhes sei o rosto, apenas nome, apelidos, profissões, datas de morte e nascença. Vieram de terras ainda mais frias. Começaram por curtir peles e fabricar velas de sebo. Desde há sete gerações que somos baptizados na mesma igreja. Subimos a mesma escadaria de Santo Ildefonso para expurgar pecados, muito embora, num dado momento da história, todas as velas que ardessem fossem nossas. Demos luz ao corpo de santos. É legítimo dizê-lo, como seria legítimo eu dizer que também a minha família é a minha cidade e o meu país.
Não acredito na utilidade da naturalidade. Nasci na freguesia da Sé, no mesmo ano de mil novecentos e oitenta e cinco em que nasceram a maioria dos novos emigrantes. Com uma excepção. Não serei portuguesa em outro país que não seja o meu. Sou deste tempo em que não há fronteiras, em que a língua se desdobra em muitas outras línguas numa promiscuidade que se quer intelectual, cosmopolita, europeia. Sou deste tempo em que quem não troca de língua alimenta a boca a migalhas. Ser-se português em Portugal é ser-se clandestino. É ser-se moralmente ilegal. Mas eu não nasci para a clandestinidade nem para a imoralidade ilegal. Talvez por isso haja quem me chame de irredutível.
Nasci nesta família e esta família ensinou-me que há gente que não se curva perante a fome e perante o medo. Que há quem não se deixe contaminar por esta imensa chantagem social que resume a vida portuguesa à sobrevivência do português. Tenho apenas uma língua. A minha fronteira é quando a razão legitima a cobardia e dá asilo à corrupção. Talvez seja cismática quando, ao fim de um ano de desemprego, digo que não passarei falsos recibos verdes. Que não admitirei que me paguem um ordenado abaixo do salário mínimo nacional. Que não sobreviverei pacatamente à sombra da reforma de quem trabalhou.
Tenho vinte e nove anos. Quero um emprego com um contrato legal e o mínimo que se paga a um licenciado. Tenho fome mas não como migalhas. Sou irredutivelmente portuguesa. O mesmo é dizer que nasci em Portugal, que nasci no Porto, e que ainda acredito que a cidade e o país que me viram mesmo antes que eu os visse, não me deixarão morrer.


Beatriz Hierro Lopes