sábado, 31 de maio de 2014

Thomas Hobbes


Artificialmente se cria esse grande Leviatã, chamado Confederação ou Estado (em latim Civitas) que não é mais do que um homem artificial.

Thomas Hobbes, Leviatã (1651).

sábado, 24 de maio de 2014

Luís Miguel Nava

DOIS RIOS

O corpo dividido em duas partes
fechadas
à chave uma na outra, avanço
num duplo coração como se fosse

ao mesmo tempo num só barco por dois rios.

Luís Miguel Nava.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Camilo Pessanha

Branco e Vermelho

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.

Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!

Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)

Na areia imensa e plana,
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.

Até ao chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.

A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Pavidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.

Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem
Vencida, enfim, a dor...

E ali fiquem serenos,
De costas e serenos...
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!

A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.

Ó Morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...
           

Camilo Pessanha, Clepsidra

Camilo Pessanha

Vénus (segunda parte)


II

Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
_ Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
_ Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...

Camilo Pessanha, Clepsidra

segunda-feira, 12 de maio de 2014

António Nobre


Lusitânia no Bairro Latino

........................................... Só!

Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó.
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês de Abril!
Que triste foi o seu fado!
Antes fosse pra soldado,
Antes fosse pró Brasil...

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar...
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram de sua lã.

António era o pastor desse rebanho:
Com elas ia para os Montes, a pastar,
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e todas puras
E só lhes minguava a fala
Pra serem perfeitas criaturas...
E quando na Igreja das Alvas Saudades
Que era da minha Torre a freguesia)
Batiam as Trindades,
Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava «Ave-Maria...»
E as doces ovelhinhas imitavam-me.

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite...
Um dia, os castelos caíram do Ar!

As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rotas e velhas!

Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antes doido, antes cego...

Ai do Lusíada, coitado!

Veio da terra, mailo seu moinho:
Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
Hoje, fazem-no andar águas do Sena.,.
É negra a sua farinha!
Orai por ele! tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade...

Ó minha
Terra encantada, cheia de sol,
O campanário, ó Luas-Cheias,
Lavadeira que lava o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
O ceifeira que segas cantando
O moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando,..
Flores dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, b regas de Verão!

Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?

Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca de fiar,
Cabelo todo em caracóis!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzóis!
Zumbidos das vespas ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! Ó sol! foguetes Ó toirada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões de água fresca e limonada!
Ó romaria do Senhor do Viandante!
Procissões com música e anjinhos!
Srs. Abades de Amarante,
Com três ninhadas de sobrinhos!

Onde estais? onde estais?

O minha capa de estudante, às ventanias!
Cidade triste agasalhada entre choupais!
Ó dobres dos poentes às A ve-Marias!
Ó Cabo do Mundo! Moreia da Maia!
Estrada de Santiago! Sete-Estrelo!
Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...
Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo,
Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como esposos e lagartas!
Sr. Governador a podar as roseiras!
Ó bruxa do Padre, que botas as cartas!
Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!
Que é feito de vós?
Faláveis aos barcos que nadavam, lá fora,
Pelo porta-voz...
Arrabalde! marítimo da França,
Conta-me a história da Fermosa Magalona,
E do Senhor de Calais,
Mais o naufrágio do vapor Perseverança,
Cujos cadáveres ainda vejo à tona...
Ó farolim da Barra lindo, de bandeiras,
Para os vapores a fazer sinais,
Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,
Dicionário magnífico de Cores!
Alvas espumas, espumando a frágua,
Ou rebentando à noite, como flores!
Ondas do mar! Serras da Estrela de água,
Cheias de brigues como pinhais...
Morenos mareantes, trigueiros pastores!

Onde estais? onde estais?

Convento de águas do Mar, ó verde Convento,
Cuja Abadessa secular é a Lua
E cujo Padre-capelão é o Vento...
Água salgada desses verdes pocos,
Que nenhum balde, por maior, escua!
O Mar jazigo de paquetes, de ossos,
Que o sul, às vezes, arrola à praia -
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos 1
Corpo de Virgem, que ainda veste a saia,
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadáver ainda com véu...
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta...
Bocas abertas que ainda soltam ais...
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...)
O defuntos do Mar! Ó roxos arrolados!

Onde estais? onde estais?

Boa Nova, ermida à beira-mar,
Única flor, nessa vivalma de areias!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da Senhora, coberto de luzes!
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios...
O Santana, ao luar, cheia de cruzes!
Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita...
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pela praia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. Dom Pedro, Rei-Soldado,
Atracou, diz a História,
No dia,.. não estou lembrado;
Ó capelinha do Senhor da Areia,
Onde o senhor apareceu a uma velhinha...
Algas! farrapos do vestido da Sereia!
Lanchas da Póvoa, que ides ã sardinha,
Poveiros, que ides para as vinte braças.
Sol-pôr, entre pinhais...
Capelas onde o sol faz morte, nas vidraças!

Onde estais?

2

Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera de maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-a com toda a forca,
Clamam todas à urra: «Agora! agora! agora!»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:

Senhora Nagonia!

Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Daguarda!

(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!

Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Semos probes!

Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!

Parece o Farol...
Maim de Jesus!

É tal e qual ela, se lhe dá o sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!

Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matosinhos!

Os mestres ainda são os mesmos dantes -
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vasco da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos aflitos!
Mártir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!

O lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
«As armas e os varões assinalados...»

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira,..
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...
Adeus! adeus! adeus!

3

Georges! anda ver meu país de romarias
E procissões!
Olha estas mocas, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis!
Têm orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito.
Que hão-de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão

Estralejam foguetes e morteiros.
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem Torres de David, na amplidão!

Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo. à frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos no vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis levam-nos de rastros
Que eles mal sabem andar.

Esta que passa é a Noite cheia de astros!
(Assim estava, em certo dia, na Judeia!
Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela é a Lua-Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
(Vê! dentre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
Criança em flor que ainda não os tem.
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mas ela sabe, a inocentinha,
Nas suas mãos, a Esponja deita mel:
Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha
Traz ainda o sangue da Sexta-Feira...
Passa o último, o Sudário!
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor...
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o sol-pôr...

Que pena faz vê-lo passar em Portugal!
Ai que feridas! e não cheiram mal...

E a procissão passa. Preia-mar de povo!
Maré-cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su'alma beata.

Trazem imagens da Função nos seus chapéus.

Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro,
O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!

Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.
Passam as chocas, boas mães I passam capinhas.

Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca de Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!

À porta dum casal. um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas do moribundo.

Dança de roda moças o coveiro.
Clama um ceguinho:
«Não há maior desgraça nesta vida,
que ser ceguinho!»
Outro moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...»
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...

Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Delíriums-trémens! Quistos!
Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam «uma esmolinha plas alminhas
Das suas obrigações!»
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...

Qu'é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão eles que não me vêm pintar?


Paris, 1891-1892.


António Nobre, Só, (1892)

40XAbril - Apresentação dia 15 de Maio


A Editora Abysmo presta homenagem aos 40 anos do 25 de Abril com uma obra que combina poesia e ilustração com a participação de:

 Carlos Alberto Machado, Ana Biscaia, Nuno Brito, António Cabrita, Miguel Cardoso, André Carrilho, Afonso Cruz, Joana Emídio Marques, João Fazenda, Inês Fonseca Santos, Manuela de Freitas, Vasco Gato, Alex Gozblau, Regina Guimarães, António Jorge Gonçalves, Paulo José Miranda, Luís Lázaro, Filipa Leal, André Lemos, André Letria, André da Loba, Fernando Luís Sampaio, João Maio Pinto, Miguel-Manso, Luis Manuel Gaspar, Tiago Manuel, Mariana, a miserável, Helder Moura Pereira, Raquel Nobre Guerra, Catarina Nunes de Almeida, António Poppe, Luís Quintais, Maria Quintans, Rui Rasquinho, Cristina Sampaio, Manuel San Payo, Nuno Saraiva, Margarida Vale de Gato, Gonçalo Viana, Pedro Zamith.

A apresentação é já na próxima quarta-feira,15 de Maio Rua da Horta Seca, nº 40, R/C  às 18H30

sábado, 10 de maio de 2014

Raúl Brandão: Memórias

Janeiro de 1915

Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões.
Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é
eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore
sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro
tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei
– nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser
agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da
vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e
séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais
horas perdidas... Fugi sempre dos fantasmas agitados, que me metem medo. Os homens
que mais me interessaram na existência foram outros: foram, por exemplo, D. João da
Câmara, poeta e santo, Corrêa de Oliveira, um chapéu alto e nervos, nascido para
cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam
exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atónitos. O Nápoles
ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornais?... Outro andava roto e dava tudo aos
pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte.
De dor também.
A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o
que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos.
Esses, sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria
embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões ião nítidas como na primeira hora
ouço hoje como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante
dos meus olhos a mancha azul-ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede.
O resto esvai-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que faça,
cada vez se afastam mais de mim... Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais.
Tinta. Pequenas coisas frívolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o
cabedelo de oiro, a outra-banda verde... Passou depois por mim o tropel da vida e da
morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao
contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração a morte daquela
laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no Inverno em que secou. O resto usa-se hora a

hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.

Raúl Brandão, Memórias Vol. I.

Jean-Luc Godard: Adieu au langage (2014). 

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Rui Pires Cabral

SUPER-REALIDADE
estranho à franqueza dos teus modos, baço
para os teus sentidos.
Parávamos o carro num beco qualquer,
queimávamos o rastilho das palavras
até ao deserto onde dávamos as mãos.
Lá fora, a realidade era o espaço inteiro
deitado nos vidros, o mundo caído
para dentro do silêncio.
Gastávamos depressa o tempo, perdidos
no nosso único mapa,
nenhum sinal de mudança no regresso a casa.

Rui Pires Cabral, A Super-Realidade, Lisboa, Língua Morta, 2011.


Inês Dias


Requiem para um pássaro e um autocarro perdido 
Mais um dia
Em forma de pássaro morto.
Uma amálgama ainda quente
da manhã que nasce, espécie de beleza
desmanchada a que nem o nosso olhar
consegue servir de pietá. O vento
teima em agitar uma ou outra pena,
mas não há golpe de asa que o arranque
agora ao asfalto negro.

Partilhamos, no fundo, a impotência:
o destino que o esmagou
é o mesmo que esperamos para
embarcar sem surpresas, sem direito a atrasos.
A essa indiferença cansada prefiro
a do outro pássaro que, lá muito em cima,
hoje ainda mais, refaz a traços negros
a vida. É por esses instantes

de voo que aceito continuar a aprender.

Inês Dias, In Situ, Língua Morta, Lisboa, 2012.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Beatriz Hierro Lopes

rio adentro


Um dia direi que soube de gente, ínsuas injectadas rio adentro, transbordando peito afora como enchentes que lavam de cinza os meus olhos, os teus olhos, os deles ou mesmo destes que nunca souberam, vidro ardendo entre pulsos na vez da lanterna de deus, ao alargar o abraço à margem costeira em que fantasmas marcham entre fogueiras, madrugadas inteiras em que eu, tu, eles ou aqueles dormem. Antes que a primeira maré nos venha salgar pés, tornozelos, pernas ou beijos, somos destes, destes que temem cada corredor, cada passo vagaroso, cada barra de aço ou simples saco de soro: o movimento involuntário do corpo ao aspergir sal sobre rosto de mães, irmãs e irmãos, filhos e mulheres. Um dia direi que soube dessa gente, ínsua injectada rio adentro, e que é meu o sal – só meu – a salina mais perfeita de que outros se alimentaram.

Beatriz Hierro Lopes,

Catarina Santiago Costa

PLUTÃO

A oriente 
lambia o sol
da manhã aliviava
o rubor da queimadura
com um gole de água fria
e um fio de azeite na língua.
Perseguia-o o resto do dia
até tombar na distracção
do mar em vertigem
sem veneração.
Sonambulismo
e nada mais.

Catarina Santiago Costa
Retirado de Enfermaria 6.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Carrilhão suíço


Ser um armador de mão firme e dura, tudo
O que é nó, amarração e segura
 – união - traço, muitas portas a abrir
Alarme de várias luzes laranja, o vento que as abre

 abelha que traça a sua rota firme,
 sino de bronze que nos adormece ao mesmo tempo que acorda,
 menina a ouvir o carrilhão suíço
a dar corda à manivela mecânica, como a  espera
ainda viva e Quente de um século etrusco?

Ser só alarme e traço seguro, nós,
ter sido o que não perdura, A maré aflita a levar um e outro barco
A dama que se aproxima
O carrilhão que parte.

Nuno Brito.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Homero Pumarol

JACK VENENO HA MUERTO
Esta mañana en el carro rojo de Deseo
dando vueltas al Parque Independencia
mientras intentaba enrolar un tabaco
en la portada del National Geographic
lo pude leer con estos ojos
JACK VENENO ha muerto.
Deseo inmediatamente rompió aguas,
así de feo, así de cero, así mismo,
sí, ese es su deseo,
y lloró y lloró y lloró
porque además no encontramos
una puta suficiente para los dos
y porque no hay nada que hacer sino llorar
y dar vueltas al Parque Independencia
que es el parque más feo de la bolita del mundo.
...y llorar y dar vueltas al parque Independencia y al tabaco
y terminar de enrolarlo a lágrima viva
del mismo lado de la calle El Conde,
entre los borrachos de a pie, los maniceros,
las barrigas verdes de polyester de los policías,
los carros públicos, las guaguas voladoras
y siete locos que iban corriendo, llorando, gritando
"degracimao, hijoetumalditamai, mamagüebo"
a un pintor que corría y lloraba y gritaba más rápido que ellos
y que les había robado todas las piedras
que ahora ellos no tenían y que ya nunca nadie podría tirar.
JACK VENENO ha muerto,
el campeón de la bolita del mundo,
el líder de la cuadra de los técnicos,
que luchó en mi sueño a trío con Blue Demon y El Santo
contra Frankenstein, El Hombre Lobo y La Mujer Maravilla;
JACK con Forty malt, un brazo de poder en cada cucharada,
con el salami especial de mallita,
con SangYang ahí van,
champú, rinse y acondicionador BPT,
con Avispa al pelo y piojo al suelo,
JACK saltando con la bota preparada
desde la tercera cuerda hasta el infinito;
el hijo de Doña Tatica,
el hombre de pelo en pecho,
que venció a Rick Flair con la polémica
por la faja mundial,
que acabó con El Vampiro Cao
y con La Gallina Relámpago Hernández.
Relámpago te jodieron,
Relámpago te agarraron comprando crack en Catanga,
Relámpago qué mierda es el congreso,
en mi inodoro ha crecido una mata gigante,
hay telarañas en los lavamanos,
tengo seis días sin luz,
la policía pone cada vez más cara la yerba,
mezclan la coca con azúcar de leche
y al final uno parece cada vez más una gallina
picoteando polvo en el vacío.
Relámpago vuelve a la cuadra de los rudos,
te lo piden los muchachos de La Victoria,
Relámpago vuelve por Deseo, por Vickiana, por Luis Días,
por Aramis Camilo y su organización secreta.
JACK VENENO HA MUERTO
Nietzsche lo sospechó desde un principio,
Deseo aún no para de llorar
y no hay una sola puta suficiente
en todo el Parque Independencia.
Homero Pumarol, Cuartel Babilonia.