quarta-feira, 26 de março de 2014

Inês Fonseca Santos: Sobre o asfalto I

Os poemas apanham-se como doenças
mas curam
assim que chegam à base
da existência (O’Neill

tomando banho após quebrar
o gelo). Lá, onde palavra
nenhuma existe, apenas
a tentativa do som.

É sobre o asfalto que tudo existe – e contra
o esquecimento. Mesmo o primeiro poema
sobre a pedra escrito e apagado; o primeiro,
esquecido por todos, causa última

de tanta literatura e interpretação. Lá, onde
a memória já se confunde com a imaginação.
Lá, onde se pode morrer de morte irreal,
lá, onde se pode acreditar:

o pai de Kate fazia nevar
 dentro de um livro.


Inês Fonseca Santos, in Meditações sobre o fim: os últimos poemas, Lisboa, Hariemuj, 2012.

Gino Severini: Primavera em Montmartre


Gino Severini, Primavera em Montmartre, 1909.

José Gorostiza: Muerte sin fin (Parte II)

¡Más qué vaso -también- más providente!
Tal vez esta oquedad que nos estrecha
en islas de monólogos sin eco,
aunque se llama Dios,
no sea sino un vaso
que nos amolda el alma perdidiza,
pero que acaso el alma sólo advierte
en una transparencia acumulada
que tiñe la noción de Él, de azul.
El mismo Dios,
en sus presencias tímidas,
ha de gastar la tez azul
y una clara inocencia imponderable,
oculta al ojo, pero fresca al tacto,
como este mar fantasma en que respiran
-peces del aire altísimo-
los hombres.
¡Sí, es azul! ¡Tiene que ser azul!
Un coagulado azul de lontananza,
un circundante amor de la criatura,
en donde el ojo de agua de su cuerpo
que mana en lentas ondas de estatura
entre fiebres y llagas;
en donde el río hostil de su conciencia
¡agua fofa, mordiente, que se tira,
ay, incapaz de cohesión al suelo!
en donde el brusco andar de la criatura
amortigua su enojo,
se redondea
como una cifra generosa,
se pone en pie, veraz, como una estatua.
¿Qué puede ser -si no- si un vaso no?
Un minuto quizá que se enardece
hasta la incandescencia,
que alarga el arrebato de su brasa,
ay, tanto más hacia lo eterno mínimo
cuanto es más hondo el tiempo que lo colma.
Un cóncavo minuto del espíritu
que una noche impensada,
al azar
y en cualquier escenario irrelevante
-en el terco repaso de la acera,
en el bar, entre dos amargas copas
o en las cumbres peladas del insomnio-
ocurre, nada más, madura, cae
sencillamente,
como la edad, el fruto y la catástrofe.
¿También -mejor que un lecho- para el agua
no es un vaso el minuto incandescente
de su maduración?
Es el tiempo de Dios que aflora un día,
que cae, nada más, madura, ocurre,
para tornar mañana por sorpresa
es un estéril repetirse inédito,
como el de esas eléctricas palabras
-nunca aprehendidas,
siempre nuestras-
que eluden el amor de la memoria,
pero que a cada instante nos sonríen
desde sus claros huecos
en nuestras propias frases despobladas.
Es un vaso de tiempo que nos iza
en sus azules botareles de aire
y nos pone su máscara grandiosa,
ay, tan perfecta,
que no difiere un rasgo de nosotros.
Pero en las zonas ínfimas del ojo,
en su nimio saber,
no ocurre nada, no, sólo esta luz,
esta febril diafanidad tirante,
hecha toda de pura exaltación,
que a través de su nítida sustancia
nos permite mirar,
sin verlo a Él, a Dios,
lo que detrás de Él anda escondido:
el tintero, la silla, el calendario
-¡todo a voces azules el secreto
de su infantil mecánica!-
en el instante mismo que se empeñan
en el tortuoso afán del universo.

Inês Ramos

Decidi escrever três dias antes da morte
como se a morte tivesse vindo há três dias.
Tenho fome, mas ignoro-o
Uma morta não come.

No entanto
 tenho uma ligeira dor de cabeça.
Enterraram-me ao lado do bosque negro de ébanos erectos
que uivam desalmadamente.

Na casa, silenciosa
a empregada lava o chão da entrada.
E no meu quarto, a minha mãe dorme
agarrada ao meu bilhete.
No chão, aos pés da cama, os meus sapatos
a minha saia verde nas costas da cadeira
e o frasco dos comprimidos vazio,
sobre a mesa de cabeceira.

Minha mãe está velha. Terrivelmente velha.
Mais velha do que a filha morta.

Afago-lhe os cabelos brancos
sento-me à secretária
e escrevo um bilhete.
Mãe morri há três dias.
Desculpa só te escrever hoje.


Inês Ramos, in Meditações sobre o Fim: os últimos poemas, Lisboa, Hariemuj, 2012.

terça-feira, 25 de março de 2014

Inês Ramos

Perturbam-me as sombras da casa

os uivos das janelas

os olhares das fotografias nas molduras.

O chão do corredor que range quando o atravesso

as vozes dos vizinhos de baixo, as portas que batem.

Perturba-me o empregado do restaurante em frente

que me vigia quando fumo à janela.

Perturbam-me os arrulhos dos pombos

as obras intermináveis do prédio em frente

o gato morto e já ressequido no quintal da vizinha

o estar longe, o estar só.

Perturba-me o cheiro do cinzeiro

o chiar da porta da cozinha

o bolor dos pimentos há meses no frigorífico.

Perturba-me esta constipação

as chávenas com rachas

o não ter limões, o sangue nas mãos.

Partiu-se o frasco do mel.

Inês Ramos, in e chorava como quem se diluía em mel d’abelhas, Lisboa, Tea For One, 2013. (Coleção Matéria Mínima)


domingo, 23 de março de 2014

As Abelhas Produzem Sol II


O ar está carregado de ferro e eletricidade, está húmido, da janela vejo que falam dois amantes, vão carregados de luz nas duas partes, cada um leva dela a parte que os voltará a unir, vêm um homem que urina na parte exterior do elevador do metro, no cimento fica a mancha um pouco abaixo do grafiti que apareceu há poucas semanas, numa mancha de fundo cor-de-rosa onde está escrito a negro que tudo passa e tudo é prova – O planeta gira mais um pouco até que a luz chega aqui vinda do fundo, cortada por dois prédios e chega depois toda, num riso cheio, numa onda e depois noutra e noutra maior, a luz vem com os homens que vão descer rápido para o metro. Ainda está carregado, passam as camionetas na avenida vindas dos bairros de oriente, carregadas das pessoas que são trabalhadores no ocidente, na outra parte da cidade, o movimento que não se detém. Agora em sentido contrário os carros que passam no verde, o trólei ligado aos ferros e as pessoas que vão neles nas duas direções, o movimento impessoal dentro dos carros agora que chove e que a luz digna conduz para sul, para norte, no cruzamento que vejo da janela como um ponto – a luz que se dirige em todos os sentidos e trabalha, digna, trabalha, o semáforo verde e o vermelho ordena o trânsito e quando não funciona (já assistimos a três acidentes na mesma noite) a luz que regula o trânsito (vermelha verde vermelha) a luz que direciona, prevê, cuida, a luz que é homem e colocou a luz que trabalha, a luz que o homem criou. E agora na minha cama sinto o coração central do movimento, a luz que colocou outra luz para dirigir a luz - para criar a luz: Não outra, mas a mesma, a extensão do homem, o animal de riso cheio e que se estende – ouvimos a sirene, o cuidado (a polícia, as ambulâncias) quando ele se suspende, se abeira, se ri, vemos os reflexos rápidos, talvez num pequeno apartamento acima do nosso alguém esteja a escrever sobre a Supra Realidade, ou a rechear o forno, a hippie e o cão a dormir. O nosso núcleo a ser formada dentro de ti, a continuação impessoal da luz. Agradeço o dia. As manchas de sol no homem e a dignidade da luz, caminhamos com decisão em todos estes movimentos que nos cruzam, o prédio vê-se de fora sem chamar qualquer atenção. Tocamos, acendemos pontas - Temos na boca o animal invencível que tudo acende, o que nomeámos em todos os cruzamentos, que chamamos sobre todas as formas, o que regula, o que cria - o que acelera - dois manifestos, uma carta de pedido de emprego, a jamaicana que sai a chorar do serviço de emigração, os dois chineses exaltados. Difícil imaginar que o movimento seja a nossa casa, na cama entre a estrela-almofada entrelaçamos as pontas num mesmo movimento. O verde, o vermelho, o verde outra vez, há também o amarelo a mancha azul e vermelha silenciosa que às vezes a meio da noite nada no nosso quarto quando as patrulhas dos polícias param em frente da loja de conveniência. A estrela abraçada, as várias pontas que se cruzam, as células riem-se, as pontas cruzam-se e nadam na cama, ainda no cruzamento do sono com a vigília, as nossas células riem-se e dentro delas a luz trabalha e cresce. O verde, o vermelho, o verde outra vez. Em ondas o azul e vermelho do carro patrulha. Subtraído o vermelho, no fim fica só uma mancha azul.
Eu ouvi pela primeira vez Mahler no carro de um poeta que partiu. Ainda que a música procurasse reproduzir o movimento do mar, a luz vinha em ondas cada vez maiores.

A nadar em estrela na cama

A Dignidade de que falava Pico.
 Nuno Brito.

sábado, 22 de março de 2014


Eduardo Galeano: A Incessante metáfora

Descobri isto nalgum livro: Quando as escravas negras fugiam das plantações do Suriname, no século XVIII, enchiam de sementes os seus cabelos compridos. Ao chegar aos refúgios, na selva, sacudiam a cabeça e fecundavam, assim, a terra livre. Memorias de Fogo conta muitos instantes desta história. Momentos como este, reveladores da maravilha ou do espanto da aventura humana na América. Porque toda a situação é o símbolo de muitas, o grande fala através do pequeno e o universo vê-se pelo buraco da fechadura. A realidade, insuperável poeta de si mesma, fala uma linguagem de símbolos. Eu comecei a escrever a trilogia no dia em que me dei conta, do que agora é me plenamente evidente: a história é uma metáfora incessante.


Eduardo Galeano, Ser como ellos y otros artículos, México D.F., Siglo veintiuno editores, 1997.
(tradução minha)

Pedro Salinas


O ramo tem os seus pássaros fiéis porque não ata: oferece.

Fragmento de: La rama tiene sus pájaros fieles.

Maria Quintans: A Pata da Cabra

2.

que farás com o medo quando a pecha de roeres as unhas te trans­formar num animal canhoto, contemplativo de trinta anos menos ainda com sono e uma cabra determinada a lamber os nomes intei­ros negados pelos teus dedos de unha grande a açambarcar o poeta que devagar desce a escada de um degrau único? um quinto andar de tortura na memória individual da dor.
que farás com o medo quando a língua se retorcer na boca e a pala­vra for um rasto de sangue vivo, muito vivo na jaula do arroz-doce da tua cozinha francesa?


Maria Quintans, A pata da cabra, Lisboa, Cama de Gato, 2014.

Walter Benjamin

Há um quadro de Klee que se intitula Agelus Novus. Vê-se nele um anjo, no momento preciso em que se afasta de algo sobre o qual crava o seu olhar, tem os olhos desencaixados, a boca aberta e as asas estendidas. O anjo da história deve ter esse aspeto; a sua cara está virada para o passado. Naquilo que nos aparece como uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula sem cessar ruína sobre ruína e se deposita aos seus pés. O anjo quer deter-se, despertar os mortos e recompor o que está despedaçado. Mas uma tormenta desce sobre o Paraíso e faz remoinhos sobre as suas asas e, é tão forte, que o anjo não as pode mover. Esta tempestade arrasta-o irremediavelmente até ao futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto a acumulação de ruínas sobe diante dele até ao céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.


Walter Benjamin, Tese da Filosofia da História, in Ensaios Escolhidos.

Walter Benjamin

Não existe documento de cultura que não seja ao mesmo tempo documento de barbárie. E visto que o documento de cultura não é, em si mesmo, imune à barbárie, não o é tampouco o processo da tradição, através do qual se transfere de  um ao outro.


Walter Benjamin, Tese da Filosofia da História, in Ensaios Escolhidos.


segunda-feira, 17 de março de 2014

Roberto Piva: Manifesto da selva mais próxima


Abolição de toda a convicção que dure mais que um estado de espírito
Alvaro de Campos
Os produtos químicos, a industria farmacêutica & os
miasmas roerão teus ossos até a medula/ cadáver rico
em vitaminas/ rodopios no rio da indústria/ burocratas
ideológicos morrendo de rir/ marxistas que depois que
arrancaram a próstata tomaram o poder/ vastos
desertos no Cérebro/ políticos estatísticas câncer no
rosto vazio das avenidas da Noite/ Mulheres agarrando
garotos selvagens para enquadrá-los no Bom Caminho/
assobios & fome do verdadeiro caralho fumegante/
Robert Graves, Brillat-Savarin & o refrão dos meus
desejos/ Feiticeira Ecológica no Liquidificador
Minotauro/ hortaliças incineradas por mercúrio/
botinadas da KGB & canções lancinantes/ Tempo no
osso/ Televisão/ Centauro na rota da Revolta/
Estrelas penduradas na fuligem/ Catecismo da
Perseverança Industrial/ Os governos existem pra te
deixar com esse ar de cachorro batido/ os governos
existem pra preparar a sopa do General Esfinge/ Os
governos existem para você pensar em política & esquecer
o Tesão/ Batuque Nuclear Anjo-Fornalha/ poesia
urbana-industrial em novo ritmo/ Cidade esgotada na
feiúra pré-Colapso/ recriar novas tribos/ renunciar aos
trilhos/ Novos mapas de realidade/ roteiro erótico
roteiro poético/ Horácio & Lester Young/ Tribos de
garotos nas selvas/ tambores chamando pra Orgia/
fogueiras & plantas afrodisíacas/ abandonar as
cidades/ rumo às prais salpicadas de esqueletos de
Monstros/ rumo aos horizontes bêbados como anjos
fora de rota/ Terra minha irmã/ entraremos na chuva
que faz inclinar a nossa passagem os Guaimbês/
Delinquência sagrada dos que vivem situações-limite/
É do Caos/ da Anarquia Social que nasce a luz
enlouquecedora da Poesia/ Criar novas religiões, novas
formas físicas/ novos anti-sistemas políticos, novas
formas de vida/ Ir à deriva no rio da Existência

Roberto Piva, Hora Cósmica da Águia, São Paulo, 1984.


Vasco Graça Moura: princípio do prazer

à sua volta os pombos cor de lava
nos arabescos pretos do basalto
e gente, muita gente que passava
e se detinha a olhá-la em sobressalto

no seu olhar havia uma promessa 
nos seus quadris dançava um desafio
num relance de barco mas sem pressa
que fosse ao sol-poente pelo rio

trazia nos cabelos um perfume
a derramar-se em praias de alabastro
e um brilho mais sombrio quase lume
de fogo-fátuo a coroar um mastro

seu porte altivo punha à vista o puro
princípio do prazer que caminhava
carnal e nobre e lúcido e seguro
com qualquer coisa de uma orquídea brava

e nas ruas da baixa pombalina
sua blusa encarnada era a bandeira
e o grito da revolta na retina
de quem fosse atrás dela a vida inteira.

Tatiana Faia: O Trabalho


Nunca vos falaram como a filhos, nunca vos pagaram como a homens, nunca vos trataram como a anjos.
Jorge de Sena, «Mar de Pedras»

Só ficando cego posso fazer o meu trabalho. É a única maneira. Levei algum tempo até perceber que era a única forma de isto poder resultar. Mais tarde pode dar-se o caso de alguém vir dizer que eu percebi isso mais cedo do que quando vos informei. Que empatei ou adiei esta declaração. Mas não é verdade. É possível que tenha não querido ver, o que, tendo em conta as circunstâncias, até é adequado. A única maneira de continuar, é ficar cego. Estou a dizer. Não é que seja preciso cegar completamente. Mas é preciso ir ficando, sendo que no fim, quando o trabalho estiver acabado, estarei, como consequência desse processo, completamente cego. Comecei por perder algumas cores, agora estou na fase em que cores e perspectivas se somem. Escapam-me, pequenas linhas de luz que me escapam. A minha mulher, por exemplo, ela canta na sombra, alcandorada, a sua voz dura, não a cor que ela veste, o corpo dela na varanda mais baixa, uma sombra cortada contra a praia mais ao fundo. Eu tenho tempos de ter sido o homem que a viu, mas as cores vão-se perdendo. Não são já tão nítidas. Escolhamos um dia aleatoriamente. Ontem, por exemplo. Virei-me para o lado e fiquei a ver da janela o vulto que se aproximava subindo a rua. Só quando ele estava mesmo sobre a janela, um soldado de cabelo talvez amarelo, ele riscou o fósforo, a garrafa no seu barro opaco com as flores posta sobre o parapeito acendeu-se, uma parte das cores não estava lá, nunca se propagaram na refracção da luz, ele olhou para mim, eu vi-lhe o nariz, as orelhas grandes, era um rosto sem olhos, sem idade. Nunca cheguei a entender, enquanto podia ver nitidamente, exactamente o que é a cor. Abrupta, a mão bateu contra o vidro. Ele fez este gesto porque não pode dizer se eu estou já completamente cego e é até possível que esta cara me lembrasse do meu rosto se eu a pudesse ver (e eu conheço-a, a memória do meu rosto é completamente nítida, conheço-a melhor agora, a minha memória de todas as imagens, de resto, é agora muito mais aguda). Ficámos a olhar um para o outro, a piscar os olhos no crepúsculo. Podia ser que noutro tempo nos pudéssemos ter sentado um diante do outro e que a beleza de um espantasse o outro. Eu sentado no meu banco, do lado de dentro da loja, ele do lado de lá, com o braço a afastar a coronha da espingarda do vidro. Imaginei que podia ser ainda um rapaz, ou podia ser que fosse cara de barba feita, que melhor me enganasse. A água corria nos vidros e era já tarde e digo-te mesmo que não sei. É como te estou a dizer. É preciso que cegue. Para ver, há todas as coisas que deixarei de ver. Quando comecei, pensei que este era só o meu trabalho, que nada me ia ser tirado. Não que alguém me tivesse prometido alguma coisa, ou que me tivesse pedido alguma coisa, não foi isso, nada disso. À medida que o tempo foi passando, fui fazendo concessões de todo o tipo. No princípio, talvez que fosse apenas o medo de ficar sem trabalho. O que acontece a um homem a quem tiram o trabalho ou àquele que o perde? Na minha cabeça o som de duas sílabas, ca-sa, assim, divididas por um hífen e eu caindo no interstício, com uma nuvem de pó a levantar-se e as fundações da estrutura a partirem-se frágeis como os ossos de um velho e mesmo até o meu corpo a sumir-se, a acabar-se de repente, na margem de um passeio qualquer, numa qualquer beira de estrada, sem cinematografia nenhuma, na sarjeta mesmo. Sem trabalho, não és parte da estrutura, ou a estrutura rejeitou-te, não podes comprar o teu pão. O teu contracto social. Para um solitário como eu, o pão é o único laço que me une à sociedade a que pertenço. Repara que é como eu posso ser tolerado pela estrutura. Eu nunca pus a pergunta de outro modo. O que acontece a um homem com trabalho? Eu falo a mesma língua, sou pago com o mesmo dinheiro, fui educado nas mesmas escolas e tenho a mesma religião, ainda que nenhuma pátria valha ou explique o meu amor. Este corpo não tem de verdade idioma, hino, bandeira. Posto noutro sítio, aprenderá outra língua. E outro remédio não terá que escrever-se nela. E como qualquer outro, tenho cuidados com os que me rodeiam. Tenho por eles cuidado. Nesta mesa, com um canivete, alguém riscou «nunca vos falaram como a filhos, nunca vos pagaram como a homens, nunca vos trataram como a anjos». Antes de mim, andou para aqui um leitorzito de Jorge de Sena. Leitor. Como eu. Talvez o país que me resta seja isto. Cara e olhos e talvez óculos e sentado sobre a janela, ora atento ora desatento. Muito pouco diferente de mim, talvez. Os dedos dela, por um instante, pararam sobre a minha testa. Eu nunca a vi. Ela tocou-me, foi só isso, mais nada. Sofrimento nenhum nisso. Sofrimento em nada. Por um instante ameaçou o meu limite, qualquer coisa se abriu nesse lugar. Como eu. Talvez a única coisa que eu seja. O que guarda a narrativa. É por isso mesmo preciso que vá ficando cego. É a única maneira de conseguir fazer isto. Quando comecei, isto era só mais um trabalho. Mas à medida que o tempo foi passando, fui-me sentindo cada vez mais desligado de horários, entidades patronais, colegas, escritório. O trabalho começou a andar comigo. Não que tanto dele gostasse que ofício fosse. Não é um desses casos. Antes isto. É necessária a troca, versão civilizada do sacrifício. E a troca é este luxo. O que eu não posso. Todo o meu amor inteiramente.


Tatiana Faia, Retirado de Enfermaria 6.

domingo, 16 de março de 2014

Rui Azevedo Ribeiro

Ó´NEILLISMO

Isto da alma
É treiná-la pra caçar gémeas
Como se fosse um perdigueiro
Já muito bem foi dito:
«Alma gémea? Geme-a!»
Pois então ‘Alma’
Tu com as letrinhas de ‘lama’
Não me encalças um par?
O quê, ‘ama-la’?
Mas isso já tem ’ás’ a mais!
Mais perto fica a ‘mala’
Que já se habituou a ser aviada
Aos gritos de ‘desalmado’.


Rui Azevedo Ribeiro, in Pilho nº 10, Edições Mortas / Black Son Editores, 2012.

José Guadalupe Posada




José Guadalupe Posada, trabalho gráfico.

William Shakespeare

Amanhã, depois amanhã e outra vez amanhã, arrastando-se dia a dia lentamente até à última sílaba do registo do tempo; e todos os nossos dias já passados iluminarão os tontos no seu caminho até uma morte cheia de pó. Apaga-te já vela breve! A vida não é mais do que uma sombra errante, um pobre ator que se exibe e desespera enquanto está no cenário e logo se cala para sempre. Um conto contado por um idiota, cheio de ruído e fúria, que não quer dizer nada.


William Shakespeare, Macbeth.

Marcel Proust: O fim dos ciúmes

- Mesmo que não o quisesses – disse-lhe -, há toda uma série de pequenas amizades particulares entre o teu pescoço e a minha boca, entre as tuas orelhas e o meu bigode, entre as tuas mãos e as minhas mãos. Estou seguro de que não se acabariam se nos deixássemos de amar, do mesmo modo que desde que estou chateado com a minha prima Paule não posso impedir que o meu criado vá falar com a sua donzela todas as tardes. A minha boca vai ao teu pescoço por ela mesma, sem o meu consentimento.



Marcel Proust, O fim dos ciúmes, in O indiferente e outros relatos.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Richard Brautigan

O mesmo me passou a mim uma vez. Lembro-me que em Vermont confundi uma velhinha com um rio de trutas e tive que lhe pedir desculpas – Perdão – Disse-lhe – Julgava que era um rio de trutas – Não – Respondeu ela. (…)



Richard Brautigan, A pesca da truta na América, (1967).

Inês Lourenço: Ícaro

Um cão pertence mais á Terra,
aos seus limites, até ao  último
rio. Mas ao que vive na casa
em frente, foi dado este nome
volátil. Quando só, ele constrói,
como quase todos os cães,
aquele  som agudo de sobrevoar
ausências, que faz do regresso
de qualquer lazarento dono,
o latido solar da alegria.


Inês Lourenço, 
retirado de Projecto Vercial.

Isabel de Sá: Conclusão

Fui amante da morte 
e da beleza. Vi a loucura,
acreditei na vida.
Da infância falei
como lugar de abismo.
O prazer
foi também a grande fonte
de perturbação e alegria.
Lembrei as mulheres
que recusaram submeter-se,
escrevi palavras fúnebres.

Não poupei a adolescência,
o coração magoado
e não soube que fazer
de mim fora das palavras.
Escrevi para desistir
e depender
e ter identidade.

 Isabel de Sá,  Erosão de Sentimentos, Lisboa, Caminho, 1997.

Tiago Patrício: A Literatura e a leitura da luz

O Homem Desempregado gostava muito de ler e tinha um cuidado extremo com o
tipo de luz que seleccionava para a leitura, preocupava-se tanto com este assunto
que muitas vezes se esquecia do que estava a ler e murmurava satisfeito:
– Como é boa esta luz para acompanhar uma leitura.
Passava manhãs inteiras ou semanas à volta da mesma página que tanto podia ser
de filosofia política como de uma lista da toponímia da sua cidade e nem dava conta
da perda de validade de certos livros requisitados nas bibliotecas, o que deixava os
funcionários muito aborrecidos.
Raramente lia à noite, só em último caso, em especial livros de instruções para
alguma tarefa imprescindível ou algum telegrama que lhe chegava depois do
crepúsculo.
Na casa onde morava tinha uma luz franca que iluminava os textos e as suas ideias
mais complexas, mas a partir de uma certa hora o sol deixava de bater na sala
virada para Sudoeste e tinha de sair de casa à procura do poente como de
alimentos para a dispensa. Dobrava a esquina e entrava num largo que se abria
num miradouro sobre o rio, com alguns bancos de jardim que lhe agradavam
sobremaneira. Assim, nos dias amenos, o Homem Desempregado descia as escadas
do prédio e saía para a rua com um livro forrado a papel de jornal debaixo do
braço. Passava por baixo de duas árvores e procurava um lugar com espaço para si
e para o seu livro, entre os grupos de pessoas já instaladas.
Sentava-se cheio de boa disposição, pedia licença e agradecia a amabilidade a
todos aqueles que faziam companhia ao entardecer. Aconchegava o olhar até ao
outro lado do rio, para ficar com uma boa visão periférica e fazia inspirações
semibreves de contentamento. Porém, após ultrapassar as três ou quatro páginas
do seu livro da tarde, começava a ficar incomodado com o excesso de ruído que
não lhe permitia ler sem estar sempre a perder-se com os estímulos, especialmente
com os daqueles que tinham chegado pouco tempo depois dele e já eram
considerados intrusos. Nessas alturas o Homem Desempregado lembrava-se de que
a intolerância aumentava com a permanência e o apego aos lugares. Após longas e
espaçadas inspirações conseguia voltar à leitura da luz, sem contudo deixar de sentir uma certa benevolência por aqueles que conversavam no largo do miradouro
sobre a sua leitura.

 ´
Tiago Patrício, in Cráse número 1.

terça-feira, 11 de março de 2014

Guy de Maupassant: Bel-ami

Tomaram um carro descoberto, subiram os campos Elísios e enfiaram pela avenida do Bosque. Estava uma noite sem vento, uma dessas noites de estufa em que o ar de Paris extremamente aquecido entra no peito como a baforada de um forno. Um regimento de trens conduzia para debaixo das árvores uma multidão de amorosos. Rodavam umas atrás das outras, sem cessar, essas tipoias. Jorge e Madalena entretinham-se a observar aqueles pares enlaçados, passando nas carruagens, a mulher de vestido claro e o homem de escuro. Era uma onda imensa de amantes que transbordava para o Bosque sob o céu estrelado e ardente. Só se ouvia o surdo ruído das rodas no chão. Passavam, passavam, os dois seres de cada carro recostados nos coxins, calados, muito juntos um do outro, perdidos na alucinação do desejo, estremecendo na ânsia da próxima posse. As trevas abafadiças pareciam cheias de beijos. Uma sensação de ternura flutuante, de amor bestial extravasado, pesava no ar, tornava-o mais ardente ainda. Todas aquelas criaturas, embriagadas do mesmo pensamento e do mesmo ardor, faziam correr em volta como uma espécie de febre. Todas estas carruagens conduzindo amor, sobre as quais pareciam voltear carícias, deixavam à passagem como que um hálito sensual, subtil e perturbador.



Guy de Maupassant, Bel-ami, 1885.

domingo, 9 de março de 2014

Rober Díaz: Ecrã

 De ti quisiera música ligera
    tocarte la garganta profunda 
 con mi lengua de píxeles
    sentir las sustancias móviles
como la rabia
    antes que su olor se pierda
         entre tus gritos,


saber cual es el sabor
          dulce o amargo
de tu visión sensacionalista
 
tú ojo

la luz VS. la luz mía
esplendor simultáneo

luz CONTRA luz

tú deslumbrante
    comienzo, TÙ
hiel coagulada

FALSIFICASENSACIÓN

que aparece
   y se esfuma en una interferencia
de placeres
en una antena oxidada
mi yo irradiado
                
                    YO,
       abarcado por tu señal:

         odio, o-dio, o-di-o
                    te,
odio-te, o-dio- te, o-di-o-te,


¿ porqué nunca para tu queja?


Estupidez absorbente,
hambre de hoyo negro
trágame en una calada
         suave y
par-si-mo-nio-sa-men-te


Hazme la noche,
en una operación binaria:
  
abre los ojos/ es la modernidad
cierra los ojos/ es la pos-modernidad
háblale/  que ahí está la entidad metafísica
cállate/  que ahí está la plasticidad laica

hazme sentir
el carbono 14
que vive de  historias
mal contadas


De ti quisiera dance & confusión
para activar los censores contra incendios,
delatarme como un televisor de bulbos
en esta alter-modernidad de fast- track

Soy el ecrã SUPER SLOW

Acércate a la pantalla
              ve
los rastros más insignificantes
     de mi catástrofe
              multimedia
en horario estelar,

los más pequeños detalles
     de mi colapso
              cibernético
en un canal pornográfico,

las huellas más imperceptibles
      de mi crisis
               nerval…

 Rober Díaz, El aerolito  sobre la mosca, México D.F., 2014.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Giuseppe Ungaretti: Na Galeria

Um olho de estrela
nos espia daquele tanque
e filtra sua bênção gelada
sobre este aquário

Giuseppe Ungaretti - tradução de Haroldo de Campos.



Emily Dickinson


657


Habito na possibilidade -
Uma casa mais bela do que a prosa –
Com mais janelas –
E portas - maiores

Salas como Cedros –
Que o Olhar não alcança –
E como Tecto Imperecível
Os limites do Céu –

Visitantes – os mais belos –
Ocupação – Esta –
Abrir ao máximo as minhas Mãos finas
Para colher o paraíso -


Emily Dickinson – tradução de Nuno Júdice.

Luiz Pacheco: Coro dos Cornudos

XXVI

Melhor que a mulher é o vinho
que faz esquecer a mulher...
que faz dum amor já velhinho
ressurgir novo prazer.


Finale, muito católico

XXVII


Asiim termina o Lamento
pois recordar é sofrer.
Ama e fode. É bom sustento!
E por nós reza um pater.


Luiz Pacheco in "Coro dos Cornudos" - Contraponto.

Jaime Sabines: Después de todo

Después de todo -pero después de todo-
sólo se trata de acostarse juntos,
se trata de la carne,
de los cuerpos desnudos,
lámpara de la muerte en el mundo.

Gloria degollada, sobreviviente
del tiempo sordomudo,
mezquina paga de los que mueren juntos.

A la miseria del placer, eternidad,
condenaste la búsqueda, al injusto
fracaso encadenaste sed,
clavaste el corazón a un muro.

Se trata de mi cuerpo al que bendigo,
contra el que lucho,
el que ha de darme todo
en un silencio robusto
y el que se muere y mata a menudo.

Soledad, márcame con tu pie desnudo,
aprieta mi corazón como las uvas
y lléname la boca con su licor maduro.


José Tolentino Mendonça: A Estrada Branca

Atravessei contigo a minuciosa tarde 
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

José Tolentino Mendonça, A Estrada Branca, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Ode canção


A memória foge para dentro dos casulos negros,
 mergulha ao fim da tarde, para dentro do vulcão
……………………………………………………………………………….
mergulha para dentro do espelho
a ser moldado pelas mãos quentes de um futuro artesão etrusco.
 enrola as cidades marítimas,
as futuras e as do passado:
 as que já foram queimadas pelos vulcões, inundadas pelo mar,
 levadas por tornados, abandonadas pelo último habitante.
Fuma-as em mortalha de prata:
 condensadas, cilíndricas, marítimas na espera:
  apressa o fim da história para dentro dos pulmões,
 para dentro do coração, para começar uma nova.
 Em novelo contínuo, renasço a cada perda,
 a cada segundo com o mapa do coração no bolso:
os vasos sanguíneos, as pequenas articulações,
o pulsar terno, a respiração segura:
traí o tempo por um incesto maior;
mãos, pernas, braços entrelaçados,
gente a entrar no metro, gente a sair do metro,
a mesma pulsação forte, segura;
em cada esquina recomeça a história da humanidade,
 toda em febre contínua, em novelo contínuo:
 reescreve-se pelo suor, por todos os poros:
mergulho nela, nado nela, folheio-a rápido:
 é impossível não sentir culpa enquanto se folheia,
nas pontas dos dedos, a história toda,
gente com gente dentro,
com os seus calções apertados,
 saias, botas, cio, uniformes de trabalho,
 pequenos sinos de bronze dentro dos pulmões;
a espera é cilíndrica como uma cuba, a culpa é cilíndrica como uma cuba,
e a mais perversa medusa com o seu bikini vermelho pesa o fundo do mar numa balança equilibrada:
 não há coisas equilibradas, só a morte é equilibrada mas
 não passa de um evento como andar de bicicleta;
 com o seu bikini vermelho pesa o fundo do mar,
com o seu bikini vermelho fuma o fundo do mar,
enrola as cidades marítimas futuras,
as da costa da Líbia, as da costa de Córsega,
 leva consigo a memória dos camponeses,
está no cio das baleias, no seu leite gordo e espesso,
 está dentro dos cactos, na alucinação dos cactos:
traí o tempo por um farol, pela memória mais pura e salgada,
pela memória de um farol que rega as violetas cheias de sol líquido no caule, uma memória que arde, que chove, que sua, que transpira, que chora,
que limpa as escadas, que vai ao hipermercado, que apanha navios,
 que queima navios, que uiva, que fode, que se queima com gasolina a si própria a cada segundo,
uma memória no subsídio de desemprego que corta as suas pontas para crescerem novas e com mais força, uma memória que pinga:
 a história toda, bebo-a de cada ser humano, contínua a sua corrente,
 a respiração ofegante; tenho um pacto com o futuro, com tudo o que flui, escorre-nos quente dentro dos pulsos, entra-nos no coração;
com todas as suas artérias –
o sol a pingar para dentro da sombra dos gatos,
 dobram os sinos link,
 dentro do peito, link link link,
com o seu bikini vermelho enrola as cidades, todas elas santas e descalças,
com os seus muros a derreterem,
com o seu tempo a deformar-se em sinos de fumo
 com as suas vielas e praças a derreterem, com as suas antenas de prata,
 com os cafés cheios de gente e de libido,
 só o riso é deus, só ele molda verdadeiramente a cara,
tudo o resto é prosa e a prosa não vale mais do que fazer rir uma criança,
 pôr a andar um moinho de vento, regar os girassóis:
 tenho um casulo negro no lugar do coração e
 Deus deu-me unicamente a hipérbole, única salvação,
 uma casa maior com uma clarabóia grande,
 a memória rega-se a si própria de gasolina e incendeia-se na noite quente,
arde nos fios dourados e é em tudo rede contínua e febre.
A sombra dos lírios vem-se dentro das baleias, arde no pulso,
o farol entra dentro de mim com o seu cio cor de laranja ao fim da tarde,
 o interior do farol possui-me com a sua memória salgada,
 em rede, vem-se dentro de mim, mergulha dentro de mim.
Nado dentro dele, braços aflitos em prosa, todos,
 dentro da boca passa um rio,
no fundo do lago estão as chaves dos diários dos ditadores mortos.
Quem escreve o fim da história mais não faz do que a começar,
 todas elas em novelo contínuo uma obra nunca é acabada apenas abandonada, toda a história universal,
 apanha o metro, dentro de cada célula, a correr nos fios de cabelos,
 quente, a pulsar, toda ela dou-ta condensada:
em letra uncial uma ode escrita a fluorescente na mortalha de prata –
Ode que foge, contínua para dentro dos pulmões.
Toda a história universal dou-ta fluida num abraço.

Nuno Brito.


Uma rapariga comia cerejas, descalça na praia, e as ondas vinham e levavam os caroços. E no fundo do mar os caroços davam cerejeiras. E no cimo, com os pés molhados e salgados, a rapariga comia cerejas numa praia perto de Nagasaki. Um cogumelo de fogo e fumo formou-se no ar e o mar contraiu-se com as cerejeiras no fundo. E a sombra da rapariga continuou a comer a sombra das cerejas: E as sombras dos pára-quedis­tas desceram, fluorescentes sobre a tarde roxa: e a sombra roxa recheou de susto os pescadores; todos eles com ametistas nos bol­sos mergulhavam no mar dourado do fim da tarde.


Mais tarde Mina cantaria Nagasaki Blues. A música no fundo era um mambo mal tocado.

Nuno Brito, Creme de la Creme, Porto, Planeta Vivo, 2011.


De vez em quando uma língua de mármore entra no Aleixo, por entre as nuvens, e leva uma criança: Se a língua quiser leva duas crianças, se lhe der vontade a língua tira três ou quatro grupos de meninos aos pais e desaparece. Os pais vão à Segu­rança Social e a língua não devolve as crianças: E os pais pedem à língua uma segunda oportunidade; que vão tratar da vida, ter rendimentos: A língua recolhe-se para dentro do edifí­cio burocrata e volta sem trazer nada.





Nuno Brito, Créme de la Creme, Porto, Planeta Vivo, 2011.