sábado, 29 de setembro de 2012

Limpa Neves

                                                                                                   A derrota, a única ficção...

I.

Ele era um ferido de guerra e a mãe era limpa-neves - Chamavam-lhes os “Limpa Neves” o soldado ferido e a mãe, um núcleo familiar que vivia numa estrada nacional do Canadá, a última casa antes de chegar ao Pólo Norte, ali acabava a estrada que vinha do sul, começava na fronteira com os Estados Unidos, Dakota do Norte, continuação de uma estrada um pouco melhor que começava no Nebraska e passava pelo Dakota do Sul.

II.
 A casa tinha um jardim com a estátua de Nossa Senhora de Fátima e três pastorinhos cobertos de neve, um portão verde e enferrujado também cobertos de neve e o limpa-neves da mãe.



III.
O ferido de guerra conduzia o limpa-neves da mãe para ir à estação de serviço mais perto, a 32 quilómetros, conduzia pela neve suja ao largo da estrada, chegava ao fim do dia com os cigarros para ele e para a mãe, os dois enchiam-se de fumo. A nuvem de fumo mimetizada pela neve.


III.

A mãe veio num barco com o pai (O Neves morto) vinha grávida: dentro dela crescia um futuro ferido de guerra, a medalha de mérito numa gaveta do quarto por baixo das bolas das meias e do passaporte português dos anos 60. Pai e mãe dois seres mimetizados numa emigração massiva e portuguesa: dirigida para todos os lados – uma expansão necessária, anti-epopeia precária e assimbólica – as duas bocas beijaram-se e pisaram o Canadá. A promessa de trabalho foi logo cumprida, o pai começou a trabalhar na construção de uma biblioteca, dos 82 trabalhadores, 54 eram portugueses. O empreiteiro aproveitou o contacto de um outro português já americanizado que mandou vir uns quantos e passaram a palavra, a familiares, amigos – Vieram quase todos no mesmo barco: algumas famílias compostas e outras no começo, no grau zero, começar no meio da neve. O empreiteiro prometeu um trabalho às mulheres dos empregados – A empresa oferecia almoço aos funcionários ali na obra – cozinharem para os operários. O turno da uma e o turno das duas para que a obra não parasse. Cozinhavam em casa e levavam a comida à empreitada. Os tachos numa pequena mesa. Recipientes térmicos para que a comida  não arrefecesse até ao segundo turno (quase sempre feijão e carne rija) os empregados com os pratos de plástico na mão, os capacetes pousados (prazer maximizado pelo trabalho ainda mais no segundo turno) O pai era do segundo turno. A mãe cozinhava para os dois. A promessa deste hábito até à conclusão do edifício e logo ali, já nos últimos retoques um acidente de trabalho, cai um andaime mal colocado, morre o pai - Não foi o aviso de um ferido mas já de um morto – Rápido Apurar responsabilidades, ocultar informação à inspeção do trabalho, um advogado gordo que é visto a falar com o empreiteiro, cada vez com mais medo de um processo. Logo a cruz, uma cruz pequena de madeira que os operários fizeram e colocaram no lugar da queda. As flores que a mãe deixava. Continua por algum tempo a trabalhar ali. Cozinha em casa e leva a comida – o filho vai crescendo dentro dela, a ajuda de alguns funcionários, porque não chega o salário, quase simbólico para as mulheres que cozinham. A promessa de ajuda por parte do empreiteiro que se solidariza com a situação. Não tinha capacete o que inibe logo um possível processo da inspeção laboral. Não falar muito no caso – Quando a obra termina a mãe passa a trabalhar numa cantina e depois num restaurante que fechou pouco depois e o filho nasce já quando começa a fazer limpezas numa casa. Logo duas e depois três casas por semana. Depois a promessa de um emprego público, ajuda possível de uns portugueses que estão no norte.

IV.
Um município que fazia fronteira com o Pólo Norte estava a recrutar limpa-neves para as estradas regionais e nacionais. E agora a mãe, uma limpa-neves – um exemplo de trabalho duro e feminino, pleonasmo desapercebido, potencializado. Um salário não tão baixo para compensar o frio e o isolamento do lugar … uma casa pertencente à polícia florestal  (seria sua durante o período de trabalho) e o limpa-neves. No contrato intemporal um jurista atento e sincero podia deduzir a intenção de um trabalho eterno / pelos tempos fora, seguro (Porque sempre vai haver neve ali) e ninguém quer ir para ali– ali a casa da guarda florestal – O estado Canadiano a resolver para sempre a questão – 3 limpa-neves por município e para toda a vida e que os seus filhos sejam também limpa-neves[1] e assim de geração em geração como monarcas da neve, solitários e aliados dos guardas florestais nos seus reinos de Paciência.
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V.
O filho crescia. A mãe levava-o à escola no limpa-neves, a mãe à frente e ele atrás, depois continua o trabalho, sempre montada no limpa-neves e vai buscar o filho à escola (agora por outro atalho, para que o veículo limpe agora outro percurso – qualquer viagem teria de ser pensada sobre esta dupla utilidade: laboral e pessoal.
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VI.

O ferido da guerra que ainda ia passar (em contra-campo a coleção dos soldadinhos de chumbo que eram do pai, olha pela janela, vê, entre a estátua de Nossa Senhora e os três pastorinhos chegar a foca … Vem ferida e cocha, sai para o jardim nevado, no confronto visual a foca para – a primeira sedução: o perigo, aproxima-se. A foca não tem mais nada a perder, deixa-se tratar pelo ferido – Ele traz ligaduras de casa e liga a pata ferida da foca – mordida por um mamífero maior, um animal perigoso do gelo, recolhe-a para o jardim traseiro (não há barreiras – o jardim traseiro pode ser todo o Pólo Norte – vai brincar para o jardim– dizia a mãe depois – ele ia brincar com a foca (os dois abraçados a rebolarem pela neve - amizade animal e sincera. A mãe põe-lhe restos de comida em cima de folhas de jornal e uma bacia com água.

VII.
Quando o filho foi para a guerra, a limpa-neves mandou instalar um telefone fixo. Ele ligava todas as semanas, depois  recebeu outra chamada, mas era uma secretária, dizia que ele estava ferido mas estava bem. A foca estava mais velha, os bigodes pareciam antenas. Os dois mamíferos abraçaram-se. A mãe via pela janela e pensava – Sim, é possível um abraço sem braços. Os dois rebolavam mimetizados pela neve: uma bola branca no branco, abraço que rebola.






VIII.

Uma vez na televisão passava um programa sobre curiosidades.      Rápidas, perenes: notícias dadas em menos de dois minutos sobre diferentes temas, ciência, história, política, sociedade, desporto, futilidades vagas com o objetivo de chocar rápido e serem esquecidas rápido, informações desconexas sem ligação possível, um desporto aquático exótico, uma praga de gafanhotos vista por satélite, um fantasma apanhado numa câmara de vigilância de supermercado, histórias fragmentos que se sobrepunham a outros fragmentos até vir o limpa-neves. Se dava a reportagem de um menino que é resgatado de um poço depois de viver ali 20 dias, logo passava para a imagem de uma tortura policial, um homem que cai a uma linha de metro, um papagaio que diz a Declaração Universal dos Direitos do Homem ou as múmias da Europa, Agora no ecrã um polvo. O apresentador em voz off fala da anatomia do polvo – a mãe cozinha bolinhos de bacalhau, separa alguns bocados de bacalhau cru que deixa em cima das folhas de jornal para a foca. A voz diz que os polvos tem três corações – dois deles bombeiam o sangue para os tentáculos e o outro para a cabeça. O ferido de guerra vê os tentáculos que parecem bailar na televisão à volta de um ouriço do mar e pensa: Nós também temos três corações … Na cozinha ouvem-se os bolinhos a fritar no óleo e a foca come lá fora. Uma nuvem muito escura e começa a nevar o que significa mais trabalho. Curiosidades perenes e logo absorvidas. Como um limpa-neves da consciência. Os médicos falavam em amnésia autoinduzida, o soldado já não se lembrava em que guerra tinha estado. Isso seria uma curiosidade ociosa: saber o passado. Uma magra satisfação – Perguntar a um funcionário do jardim zoológico com o dedo apontado para um animal – Quantos corações tem?
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IX.

13, 14, a mãe conta na máquina de gasolina, os litros – Por favor: Encha o limpa-neves de gasolina– o inglês cruzado pela pronúncia portuguesa. O homem com a mangueira, esvazia as gotas que ainda caem – duas três, quatro gotas podem valer mais dois quilómetros ou três, sacode a mangueira dentro do veículo – como se estivesse a urinar contra um muro. A sacudir agora e o limpa-neves cheio de gasolina, a mãe e o filho regressam, o capacete é desnecessário. A mãe sente nesse dia muita segurança, como se o seu coração fosse de uma cor azul solar – um coração submarino, a bombear dentro do corpo: a luz que chega aos corais e às ametistas do fundo. Nesse trajeto o índio aproxima-se, O passo seguro, pela estepe de gelo. Subiu, foi subindo.
- Um coração que já não sente os pés –
 Caminha pela neve, vem do sul.




Há que passar uma fronteira natural, um rio – e logo chegar de molhado / mas a fronteira amplificada, ou melhor, o índio não quer chegar aos Estados Unidos, a fronteira natural, o rio, fronteira animal, ter que passar por cima de um búfalo morto, o que resta dele, para chegar depois ao Canadá – Assim fronteira amplificada, natural e política, logo duplamente natural, orgânica até no que têm de institucional, entranhado na paisagem a ordem política, animal que é preciso respeitar: Os Estados Unidos, fronteira extensiva e heterogénea: mais do que um país uma ideia: mas uma ideia que se tem de atravessar como um pensamento obsessivo, ultrapassá-lo deixar a margem: a fronteira tripla – sair disso que fica entre o México e o Canadá – fronteira animal: A ajuda de um camionista, logo de outro, auxílio ocasional e fronteiriço, a polícia da Virgínia do Norte (um corpo enorme de guardas fronteiriços que se reproduzem: chegar e ao entrar no Canadá o índio vê uma toupeira da neve atropelada, o corpo fronteiriço partido em dois – continua a caminhar: sobe a estrada nacional número 43 e 44 – a dos Limpa neves. já no fim da estrada vê a última casa: visão de uma nova fronteira acolhedora, uma margem que o chama. Como reação ao frio o coração do índio bombeia o sangue cada vez mais rápido para que aqueçam as extremidades. Havia umas luvas na casa em cima do passaporte português dos anos 60, mais que caducado era agora um documento histórico ao lado de uns patins de gelo: que naquela zona de neve suja eram tão exóticos como umas barbatanas numa casa na Serra da Estrela – Só por sentimento de pertença a um país, instituição louca e repisada (como uma toupeira cega) O Rei Artur e os euro deputados – mito da caverna
 SINOPSE: A toupeira depois de escavar um túnel chega a uma trincheira; a prova máxima do progresso da engenharia e arquitetura militar do Grande Século. A toupeira, como Platão, vê a luz que chega ao fundo da trincheira: as botas sujas dos soldados, a lama onde alguns se afundam quando dormem e pensa – Isto sim, isto é do Caralho.

IX.

O índio, com os pés vermelhos de frio, ainda que almofadados: tinha marijuana atada debaixo dos pés – necessário para passar para Os Estados Unidos, os pés almofadados pela erva não deixavam pegadas que podiam ser seguidas pelos guardas fronteiriços. Depois na subida a erva aquecia os pés: como uma pomada. Mas ao entrar no frio, a erva já congelada, os pés vermelhos e inchados andavam sem ordem. Andou até que viu os Neves. Cada um com o seu gorro, mãe e filho. Pareciam só um: Dois braços, dois pés, um gorro às riscas – Alucinação da hipotermia do índio, miragem dos desertos de gelo: um ser –Mãe e filho, um ser único invertido no nervo ótico do índio – Os Neves não perceberam o que o índio dizia / o índio e os Neves: um choque talvez igual ao que sentiram os aztecas ao verem os conquistadores espanhóis montados em cavalos e os conquistadores ao verem os aztecas. Potencialização desta entropia.




Ele não parava de olhar para a estátua de Nossa Senhora, parecia que esperava mais dela do que dos Neves: Até que apareceu a foca entre os dois numa completando uma trilogia rara mas acolhedora pelo silêncio.
Afinidade natural. Agora eram quatro. A foca, o índio, o ferido de guerra e a mãe limpa-neves – Núcleo familiar amplificado. Um – Quatro corações, um novo corpo familiar. …………………………………………………………………………………………...             
  X.

A foca comia menos. A comida racionada para chegar para o índio. Ração reduzida para a foca, menos sobras. Também os ciúmes. Não havia nenhum esforço da parte do índio por cativar a foca, os gestos duros e quadrados (geométricos como o voo das moscas, previsíveis as rotas dos braços do índio no ar) braços quase sempre inertes, musculados os tendões habituados ao sossego e ao trabalho duro de carregador de pedras zapoteca. Afinidade adiada para com a foca, um jogo de resistência. A foca entrava cada vez menos em casa. Desaparecia por muito tempo nas traseiras do jardim (O Pólo Norte todo) às vezes voltava com sangue na boca. Preferia caçar do que sentir-se a mais. Via o índio com o enfoque da posse / O índio apoderou-se do lugar que era dela. Primeiro tinham muitas semelhanças: os Neves (o núcleo primário) não percebiam o índio nem o índio percebia o Neves – Adivinhavam-se os gestos, da mesma incapacidade comunicativa era a relação Neves / Foca e Foca/ índio – A comunicação verbal não servia a não ser para a dupla nuclear: O ferido de guerra e a limpa-neves – Mas uma comunicação viciada pelo tempo e pela relação mãe / filho: falavam pouco e o que diziam um ao outro estava emprenhado de incomunicação – Assim para o Núcleo: os quatro: a comunicação verbal não funcionava e era meramente passiva – Recebida pela televisão e o rádio; palavras que entram e sobre as quais não se discutem. Para hidratar a pele revestida de uma grande capa de gordura oleosa (proteção natural do frio)– Tinha de se afastar muito para a zona de gelo e ali o buraco, ou então o Neves regava-a com a mangueira no quintal – duas vezes ao dia – virava-se (dorso para cima, revirava-se, rebolava na neve – que para as focas é tão árido como o deserto para o coiote) – A Limpa-neves tenta-o seduzir com uma ração melhorada e aumentada, com um redobrar do carinho e o índio que passa os dias a ver televisão: programas da manhã e da tarde, novelas da noite: não entende o que dizem, apenas o prazer visual – as raparigas de mini-saias que dançam e cantam de manhã e à tarde e à noite, e se não dançam no ecrã, o índio muda de canal para outro onde elas apareçam – o índio passou a regar a foca – tentativa de conquista e a foca gostava dos banhos do índio que cantava com a mangueira na mão – Provar a carne da lua – uma canção zapoteca. Assobiava – um dia foi com a foca, era um teste de amizade, ele a caminhar e a foca a segui-lo (amigos agora, teste passado) e o índio abriu com um serrote um buraco no gelo – este buraco ficava mais perto – A foca mergulhou – Veio à superfície (a zona da literatura atual depois dos poços fundos que Freud Abriu). Amizade reforçada e o passeio diário até ao buraco no gelo – banhos cada vez mais prolongados enquanto o zapoteca cantava: caminho de regresso reforçado o prazer, e uma amizade autossustentada – evolução que nunca retrocede – já só pode aumentar. Era este laço que faltava ao Núcleo – agora sim, reconciliação da foca com a limpa-neves e o ferido de guerra, com a casa (abrigo e toca desta família) poupança de água graças ao índio. Um vínculo reforça todos os vínculos, não viver em si, mas habitar a ligação.

O Neves começou a escrever numa sebenta: O título: Memórias de uma guerra que não existiu – Dois dias e a sebenta completa de letras, não saturada de revisões e correções – A sebenta desaparece um dia – apurar culpas, a mãe, o índio, a foca: ninguém sabia da sebenta. O Neves sabia que o índio não gostava que ele escrevesse – sentia-se traído quando ele o deixava sozinho em frente à televisão e ia escrever no isolamento do quarto: subtrair-se à companhia do zapoteca. O Neves sentia isso: não falavam, mas o índio sentia-se seguro, reforçado e complementado com aquela presença ao seu lado no sofá – todo o dia a verem televisão, como se fossem um só – mais do que uma alma gémea, uma só alma: Neves-zapoteca, o comando na mão – a respiração do Neves fazia-lhe falta, era como se fosse a sua respiração, mais a da foca, respiração mais quente aos pés dos dois – quase sempre adormecida pela voz dos apresentadores. Quando o Neves se levantava, o índio sentia-o como uma agressão mais do que um abandono – personalizava esse abandono – como um ataque … e o Neves não se levantava para ir por água, ele ia escrever. isso era uma dupla agressão que o índio não tolerava – Via-se pelo seu movimento nervoso de cabeça que levantava e revirava. O Neves nunca ia escrever sem sentir culpa – Daí quase sempre na sebenta, o tema dos textos era a culpa. Essa mulher personificada por John Milton que nos Paraísos Perdidos abre as portas do inferno, por onde saem os demónios que atacam os primeiros homens – A culpa que abriu o canal de tudo que é mau ao homem, a fêmea que penou até abrir a porta, entalada na garganta do Neves – Poemas de culpa, hinos de culpa, odes de culpa, tragédias de culpa, contos e novelas de culpa, sebentas cheias de uma epopeia da culpa – uma anti-epopeia da vontade / castração do índio ou criação do índio nos seus gestos de desprezo. Desprezo duplo quando o Neves voltava – A pele do índio protegida pelo choque – a respiração não era a mesma – era o índio que escrevia a culpa, criador dos textos de Neves – Dose dupla. O Neves começou a ler os textos à Limpa-Neves, ela sentada e a foca a ouvirem – O índio ia fumar para o quintal, entre a estátua de Nossa Senhora e os três pastorinhos – como um elemento a mais na aparição mariana – O fumo azul que subia entre os cinco.
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XI.

Uma vez o índio teve necessidade de falar … mas o quê? Demonstrar só descontentamento – O Neves levantou-se rápido por uma ideia que lhe veio, a caneta já na mão e o índio: FUCK ! – Desabafo em inglês do índio – paralisia de Neves – descontentamento do Zapoteca que não podia tolerar mais o abandono, desabafo sincero – só vazio na expressão – o zapoteca podia ter dito outra palavra qualquer – a entoação, essa foi a que agrediu – vinda da alma mas dentro do colete de uma palavra: onde é que ele aprendeu aquilo, claro que num filme que viu – mas fuck com pronúncia portuguesa, de tanto ouvir a limpa-neves e arranhado de zapoteca; Expansão da culpa dentro do Neves e voltou para o sofá sem dizer nada, melhor não escrever, melhor não fazer, como Bartleby. Ver televisão, dormir, estar com o índio e a foca – não fazer nada mais do que oferecer a sua companhia ao trio – prolongado na cozinha pela limpa-neves; quatro corações agora que a mãe se senta no sofá, agora que vai começar a telenovela que todos gostam. Uma epopeia do quotidiano corre a toda a pressa na cabeça do Neves, musa negra que o quer afastar do trio, ser um menos, ir escrever: Anulado e reduzido.

XII.

Apaziguamento, o zapoteca mais tolerante e o Neves a escrever – solução, o Neves escreve agora no sofá. Numa semana acaba “Freud e a toupeira”: anti-epopeia de 16 capítulos, ler à mãe, passar a computador a sebenta, o que implica confiança, na transcrição não alterar nada: Pela internet “Freud e a toupeira” chega à Alemanha. Em Berlim DJ Kant abre o documento… Duas semanas de ansiedade da parte do ferido de guerra – Quer já a reação, a crítica de DJ Kant … desesperadamente. Isola-se, anda nervoso. Solução, fazer uma espera construtiva, continuar a escrever… em duas semanas fica pronto: Mugre de la Mugre, grande investimento na novela fragmentada: esvaziamento para a sebenta de tudo aquilo que lhe corria, induções da musa negra com asas negras e pés negros, e outras musas, quem sabe, mais coloridas. Havia esperança nesta história onde os fragmentos comunicavam. Ânsia de comunicação – DJ Kant sem responder. O soldado ferido continua a escrever, a mesma ânsia de Proust, as mesmas olheiras de cansaço, a sede de dizer tudo na última casa antes do Pólo Norte. Mês seguinte, produção quase inumana. Termina: Uma Nação Civilizada; Moinho cerca de água; As frases circulares parecem pedras; As ideias de Vanguarda; O Eclipse e os girassóis; El torito; A sopa dos operários, e Dois Homens das Neves. – Oito novelas em menos de cinco meses; não muito longas, incisivas, de frases curtas, com despreendimento emocional, escritas ali em frente à televisão, mimetizado com o núcleo – Passar a computador. DJ Kant sem responder e o impulso: seguem as outras, um mail para ele com nove anexos: as últimas nove novelas, decisão apressada de que logo se arrependeu porque DJ continuava sem responder ao primeiro. Mas sim, pronto: a obra completa de Neves guardada no seu mail.

XIII.

Literatura marginal – primeiro, o que será isso? Especialização crítica de DJ Kant – Para muitos o melhor crítico literário mundial, reunia todas as características de um Colosso Literário, alguém que está quase sempre a arrebentar: mas aqui o filtro “Crítico literário marginal de literatura marginal”: Para muitos melhor que Harold Bloom, Ricardo Piglia, Roland Barthes: marginal, fronteiriço (aqui implicada a ideia de que existe uma crítica que seria central, académica, científica, e uma margem: DJ Kant, implicada, filtro irreal. Um Harold Bloom de rastas, mas porquê as rastas marginais. O que é ser marginal senão estar completamente no centro, vinculado, vinculado, re-vinculado. Currículo interventivo – DJ Kant tinha aconselhado o suicídio a 6 escritores, no total oito escritores marginais mortos – isto por uma elipse … uma falta de resposta de DJ Kant aos dois escritores, silêncio do crítico visto como uma crítica. Leitura demasiado interpretativa do crítico marginal – No pólo oposto – Criar uma legião indestrutível de astros literários que Kant pôs no Céu: Julian Artl, Violeta de Gand, Maria Puig e Cecília Porto – Hiper críticas acesas, um céu literário. O fascínio que DJ Kant expressava por estes escritores, dez vezes maior do que aquele que Harold Bloom expressava por Shakespeare, do que Barthes revindicava para Camus e Rivardo Piglia para Macedónio Fernandez. E nesta galáxia literária de escritores marginais queria entrar o Neves. Só DJ Kant podia abrir-lhe a porta deste Céu…

XIV.

Praticamente inacessível. Marginal. O mail da ambição: O Neves abria o mail 40 vezes ao dia. Tornava-se ausente, deixava o trio sozinho. Três corações quando podiam ser quatro. Novo hábito reforçado. Os três na sala, saídas da limpa-neves para trabalhar, os três outra vez na sala e o Neves no quarto: abrir mail fechar mail, escrever… cada vez com menos vontade porque não há crítica … à parte da mãe. Acontecimento previsto por Neves em Mugre de la Mugre – A espera como personagem… a musa negra e a espera / relação difícil, em jeito de sinopse… os acontecimentos personagens, os sentimentos também personificados, tudo à escala humana – menos as pessoas – Em Mugre de la Mugre tudo sabe a lixívia fora de prazo em cima de uma campa – Escrito no “Assunto” do primeiro mail que recebeu de DJ Kant… Choque, Impacto que logo se tornou obsessivo, novelo que engorda, obsessão que coalha, um queijo negro de chumbo cozinhado pela musa negra. A espera, mais nenhum mail… neves termina: O Rei Artur e os eurodeputados. Espera construtiva, mas logo a consciência de que terminou uma novela ociosa, vazia de conteúdo. A espera como um hábito, uma rotina de aço: Uma personagem de chumbo, que ele criou, que o Neves esculpiu de um único molde. A falta de resposta de Kant como uma resposta de Kant – Paranoia… Até que o índio se farta e entra no quarto de Neves… Os dois olhos do Neves arregalados. Marginais. Duas bolinhas negras … o ferido de guerra.


XV.

Espera uma resposta do zapoteca, a sua presença forte. Assustadora. Mas nada ( o zapoteca não se mexe, está só ali, como se o tempo tivesse parado, nada, imobilidade máxima, o Neves sente-se com medo: olha para o monitor e tudo está igual … O índio … o Neves … Sente-se drogado (não se sentia assim há mais de vinte anos, colado, o seu olhar colado ao índio, imóvel como uma estátua de cera, a sua cara expressa uma calma absoluta, quase inumana – quase a decisão de se tornar uma estátua … de se mimetizar e assim também colados os dois olhos do Neves. A imobilidade total, entrega, mergulho no sono, cada vez mais fundo e mais fundo – mas com a ajuda da vigília, a vigília máxima: A calma inumana do Zapoteca e a calma inumana do Neves. Já sem espera… O olhar paralisado mas vivo e cruzado onde dançava algo parecido a isto: Passou-nos algo por cima. Passou-nos algo e não vimos: Há uma lágrima que cai dos olhos do Zapoteca.

XVI.

Facto: O Zapoteca estava a dormir. Eram duas da manhã. Sonambulismo, entrou como aparição no quarto do ferido de guerra. Pedido de auxílio dentro do sono. De um segundo para o outro como uma onda que passou no quarto e o índio entrou… Para o ferido de guerra foi como um pesadelo acordado, maximizado por uma vigília extrema, a da espera e a do desespero previsível. Já está tudo bem. Levar o zapoteca a dormir. E já está ali a babar-se na almofada. Dormir, o Neves também e no momento em que está a adormecer sente o deslizar da foca que entra na cama, o focinho que lhe empurra para ganhar espaço ao lado do escritor. DJ Kant no seu quarto em Berlim escreve uma carta para enviar ao Neves.

XVII.

Impossível escrever algo tão vivo. Enquanto o ferido de guerra dorme, DJ Kant escreve, escreve há mais de quatro horas, pausas breves para fumar, cada vez mais reduzidas. Nunca lhe tinha passado isso: confrontado consigo mesmo, DJ Kant, surpreendido por si mesmo, pela vivacidade com que escreve. Prenúncio, a entrada de Neves no céu literário marginal – segundo: Crescendo de interesse (a toda a pressa) do crítico marginal pela literatura marginal do Pólo Norte. O teclar rápido e nervoso enquanto um cigarro se fuma a si mesmo no cinzeiro, esquecido/ rejeitado pelos lábios, pelo corpo, porque todo ele quer escrever a identificação/ a afinidade sincera que sente pelos nove textos que leu na última semana, quase sem sair. Como se uma onda de vontade tivesse passado pelo quarto – escrita automática de uma crítica em ebulição emotiva: Vai já na página 56 – Uma epopeia crítica, uma odisseia de crítica literária – também criação literária, oculta, expansiva. Crescendo Máximo (Como uma Lua com Cio, DJ Kant) acaba, esvazia uma corrente que lhe parecia infinita, mas já, 154 páginas de crítica – O Neves no Céu Literário).

XVIII.

O ferido de guerra está a dormir. A foca entre os braços. Desconhece o que passa nesse quarto m Berlim. Está demasiado longe. Por agora sonha algo que sonha também a Limpa-Neves, e a foca ao seu lado e o índio… sonha algo onde a linguagem não entra. Está longe: Os quatro corações do ferido de guerra, sincronizados, tranquilos. Batimento seguro, supremo, humano. O ferido de guerra: o sonho dos quatro, onde a linguagem não chega.
Quando se desperta quer escrever o sonho. Narrativa dupla que se chama: Os moinhos de Felice.
Conto que a foca, o índio e a limpa neves também sonharam – Termina rápido, abre o mail e vê a carta de DJ Kant. 154 páginas que imprime sem ler em papel de rascunho e logo põe em cima da mesa / adia a leitura, está nervoso e sua. A crítica na mesa da cozinha, e o zapoteca (responsável pelo desaparecimento da sebenta que continha a primeira novela) corta com uma faca a ligação da internet e leva as 154 páginas da carta para o jardim enterra debaixo da neve. A crítica (entrada no céu marginal da literatura marginal). As folhas debaixo da neve ficam molhadas.

XIX.

O zapoteca, no sítio onde as folhas estão enterradas, os pés vermelhos e grandes em cima da neve, os pés quentes que aquecem a neve. Parado como uma estátua, com a única função de que a temperatura dos seus pés faça derreter a neve mais rápido: molhar as folhas mais rápido – não a destruição dos papeis hereges pelo fogo, purificação pelo fogo, as cinzas – não, os pés do índio / só deixar-se estar em pé: não há ação destrutiva – 10 minutos – Enquanto o ferido de guerra procura os papéis… Agora molhados, completamente molhadas / Passaram-se quinze minutos. Os textos molhados e inacessíveis, um bola de água e pasta de papel, as letras tornaram-se manchas.

XX.

A mãe vinha ao longe. Estacionou o limpa-neves, passou a estátua da aparição e entrou em casa, passou a casa e saiu para o jardim (Todo o Pólo Norte). Viu uma bola de amizade autossustentada, bola de neve que crescia nas traseiras do jardim (O Pólo Norte Todo): cada vez maior … os três mamíferos rebolavam. O núcleo: Parecia endireitar o eixo.




[1] Tipo de contrato medieval de arrendamento da terra pelos senhores feudais: por três vidas.


Nuno Brito