sábado, 29 de setembro de 2012

Limpa Neves

                                                                                                   A derrota, a única ficção...

I.

Ele era um ferido de guerra e a mãe era limpa-neves - Chamavam-lhes os “Limpa Neves” o soldado ferido e a mãe, um núcleo familiar que vivia numa estrada nacional do Canadá, a última casa antes de chegar ao Pólo Norte, ali acabava a estrada que vinha do sul, começava na fronteira com os Estados Unidos, Dakota do Norte, continuação de uma estrada um pouco melhor que começava no Nebraska e passava pelo Dakota do Sul.

II.
 A casa tinha um jardim com a estátua de Nossa Senhora de Fátima e três pastorinhos cobertos de neve, um portão verde e enferrujado também cobertos de neve e o limpa-neves da mãe.



III.
O ferido de guerra conduzia o limpa-neves da mãe para ir à estação de serviço mais perto, a 32 quilómetros, conduzia pela neve suja ao largo da estrada, chegava ao fim do dia com os cigarros para ele e para a mãe, os dois enchiam-se de fumo. A nuvem de fumo mimetizada pela neve.


III.

A mãe veio num barco com o pai (O Neves morto) vinha grávida: dentro dela crescia um futuro ferido de guerra, a medalha de mérito numa gaveta do quarto por baixo das bolas das meias e do passaporte português dos anos 60. Pai e mãe dois seres mimetizados numa emigração massiva e portuguesa: dirigida para todos os lados – uma expansão necessária, anti-epopeia precária e assimbólica – as duas bocas beijaram-se e pisaram o Canadá. A promessa de trabalho foi logo cumprida, o pai começou a trabalhar na construção de uma biblioteca, dos 82 trabalhadores, 54 eram portugueses. O empreiteiro aproveitou o contacto de um outro português já americanizado que mandou vir uns quantos e passaram a palavra, a familiares, amigos – Vieram quase todos no mesmo barco: algumas famílias compostas e outras no começo, no grau zero, começar no meio da neve. O empreiteiro prometeu um trabalho às mulheres dos empregados – A empresa oferecia almoço aos funcionários ali na obra – cozinharem para os operários. O turno da uma e o turno das duas para que a obra não parasse. Cozinhavam em casa e levavam a comida à empreitada. Os tachos numa pequena mesa. Recipientes térmicos para que a comida  não arrefecesse até ao segundo turno (quase sempre feijão e carne rija) os empregados com os pratos de plástico na mão, os capacetes pousados (prazer maximizado pelo trabalho ainda mais no segundo turno) O pai era do segundo turno. A mãe cozinhava para os dois. A promessa deste hábito até à conclusão do edifício e logo ali, já nos últimos retoques um acidente de trabalho, cai um andaime mal colocado, morre o pai - Não foi o aviso de um ferido mas já de um morto – Rápido Apurar responsabilidades, ocultar informação à inspeção do trabalho, um advogado gordo que é visto a falar com o empreiteiro, cada vez com mais medo de um processo. Logo a cruz, uma cruz pequena de madeira que os operários fizeram e colocaram no lugar da queda. As flores que a mãe deixava. Continua por algum tempo a trabalhar ali. Cozinha em casa e leva a comida – o filho vai crescendo dentro dela, a ajuda de alguns funcionários, porque não chega o salário, quase simbólico para as mulheres que cozinham. A promessa de ajuda por parte do empreiteiro que se solidariza com a situação. Não tinha capacete o que inibe logo um possível processo da inspeção laboral. Não falar muito no caso – Quando a obra termina a mãe passa a trabalhar numa cantina e depois num restaurante que fechou pouco depois e o filho nasce já quando começa a fazer limpezas numa casa. Logo duas e depois três casas por semana. Depois a promessa de um emprego público, ajuda possível de uns portugueses que estão no norte.

IV.
Um município que fazia fronteira com o Pólo Norte estava a recrutar limpa-neves para as estradas regionais e nacionais. E agora a mãe, uma limpa-neves – um exemplo de trabalho duro e feminino, pleonasmo desapercebido, potencializado. Um salário não tão baixo para compensar o frio e o isolamento do lugar … uma casa pertencente à polícia florestal  (seria sua durante o período de trabalho) e o limpa-neves. No contrato intemporal um jurista atento e sincero podia deduzir a intenção de um trabalho eterno / pelos tempos fora, seguro (Porque sempre vai haver neve ali) e ninguém quer ir para ali– ali a casa da guarda florestal – O estado Canadiano a resolver para sempre a questão – 3 limpa-neves por município e para toda a vida e que os seus filhos sejam também limpa-neves[1] e assim de geração em geração como monarcas da neve, solitários e aliados dos guardas florestais nos seus reinos de Paciência.
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V.
O filho crescia. A mãe levava-o à escola no limpa-neves, a mãe à frente e ele atrás, depois continua o trabalho, sempre montada no limpa-neves e vai buscar o filho à escola (agora por outro atalho, para que o veículo limpe agora outro percurso – qualquer viagem teria de ser pensada sobre esta dupla utilidade: laboral e pessoal.
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VI.

O ferido da guerra que ainda ia passar (em contra-campo a coleção dos soldadinhos de chumbo que eram do pai, olha pela janela, vê, entre a estátua de Nossa Senhora e os três pastorinhos chegar a foca … Vem ferida e cocha, sai para o jardim nevado, no confronto visual a foca para – a primeira sedução: o perigo, aproxima-se. A foca não tem mais nada a perder, deixa-se tratar pelo ferido – Ele traz ligaduras de casa e liga a pata ferida da foca – mordida por um mamífero maior, um animal perigoso do gelo, recolhe-a para o jardim traseiro (não há barreiras – o jardim traseiro pode ser todo o Pólo Norte – vai brincar para o jardim– dizia a mãe depois – ele ia brincar com a foca (os dois abraçados a rebolarem pela neve - amizade animal e sincera. A mãe põe-lhe restos de comida em cima de folhas de jornal e uma bacia com água.

VII.
Quando o filho foi para a guerra, a limpa-neves mandou instalar um telefone fixo. Ele ligava todas as semanas, depois  recebeu outra chamada, mas era uma secretária, dizia que ele estava ferido mas estava bem. A foca estava mais velha, os bigodes pareciam antenas. Os dois mamíferos abraçaram-se. A mãe via pela janela e pensava – Sim, é possível um abraço sem braços. Os dois rebolavam mimetizados pela neve: uma bola branca no branco, abraço que rebola.






VIII.

Uma vez na televisão passava um programa sobre curiosidades.      Rápidas, perenes: notícias dadas em menos de dois minutos sobre diferentes temas, ciência, história, política, sociedade, desporto, futilidades vagas com o objetivo de chocar rápido e serem esquecidas rápido, informações desconexas sem ligação possível, um desporto aquático exótico, uma praga de gafanhotos vista por satélite, um fantasma apanhado numa câmara de vigilância de supermercado, histórias fragmentos que se sobrepunham a outros fragmentos até vir o limpa-neves. Se dava a reportagem de um menino que é resgatado de um poço depois de viver ali 20 dias, logo passava para a imagem de uma tortura policial, um homem que cai a uma linha de metro, um papagaio que diz a Declaração Universal dos Direitos do Homem ou as múmias da Europa, Agora no ecrã um polvo. O apresentador em voz off fala da anatomia do polvo – a mãe cozinha bolinhos de bacalhau, separa alguns bocados de bacalhau cru que deixa em cima das folhas de jornal para a foca. A voz diz que os polvos tem três corações – dois deles bombeiam o sangue para os tentáculos e o outro para a cabeça. O ferido de guerra vê os tentáculos que parecem bailar na televisão à volta de um ouriço do mar e pensa: Nós também temos três corações … Na cozinha ouvem-se os bolinhos a fritar no óleo e a foca come lá fora. Uma nuvem muito escura e começa a nevar o que significa mais trabalho. Curiosidades perenes e logo absorvidas. Como um limpa-neves da consciência. Os médicos falavam em amnésia autoinduzida, o soldado já não se lembrava em que guerra tinha estado. Isso seria uma curiosidade ociosa: saber o passado. Uma magra satisfação – Perguntar a um funcionário do jardim zoológico com o dedo apontado para um animal – Quantos corações tem?
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IX.

13, 14, a mãe conta na máquina de gasolina, os litros – Por favor: Encha o limpa-neves de gasolina– o inglês cruzado pela pronúncia portuguesa. O homem com a mangueira, esvazia as gotas que ainda caem – duas três, quatro gotas podem valer mais dois quilómetros ou três, sacode a mangueira dentro do veículo – como se estivesse a urinar contra um muro. A sacudir agora e o limpa-neves cheio de gasolina, a mãe e o filho regressam, o capacete é desnecessário. A mãe sente nesse dia muita segurança, como se o seu coração fosse de uma cor azul solar – um coração submarino, a bombear dentro do corpo: a luz que chega aos corais e às ametistas do fundo. Nesse trajeto o índio aproxima-se, O passo seguro, pela estepe de gelo. Subiu, foi subindo.
- Um coração que já não sente os pés –
 Caminha pela neve, vem do sul.




Há que passar uma fronteira natural, um rio – e logo chegar de molhado / mas a fronteira amplificada, ou melhor, o índio não quer chegar aos Estados Unidos, a fronteira natural, o rio, fronteira animal, ter que passar por cima de um búfalo morto, o que resta dele, para chegar depois ao Canadá – Assim fronteira amplificada, natural e política, logo duplamente natural, orgânica até no que têm de institucional, entranhado na paisagem a ordem política, animal que é preciso respeitar: Os Estados Unidos, fronteira extensiva e heterogénea: mais do que um país uma ideia: mas uma ideia que se tem de atravessar como um pensamento obsessivo, ultrapassá-lo deixar a margem: a fronteira tripla – sair disso que fica entre o México e o Canadá – fronteira animal: A ajuda de um camionista, logo de outro, auxílio ocasional e fronteiriço, a polícia da Virgínia do Norte (um corpo enorme de guardas fronteiriços que se reproduzem: chegar e ao entrar no Canadá o índio vê uma toupeira da neve atropelada, o corpo fronteiriço partido em dois – continua a caminhar: sobe a estrada nacional número 43 e 44 – a dos Limpa neves. já no fim da estrada vê a última casa: visão de uma nova fronteira acolhedora, uma margem que o chama. Como reação ao frio o coração do índio bombeia o sangue cada vez mais rápido para que aqueçam as extremidades. Havia umas luvas na casa em cima do passaporte português dos anos 60, mais que caducado era agora um documento histórico ao lado de uns patins de gelo: que naquela zona de neve suja eram tão exóticos como umas barbatanas numa casa na Serra da Estrela – Só por sentimento de pertença a um país, instituição louca e repisada (como uma toupeira cega) O Rei Artur e os euro deputados – mito da caverna
 SINOPSE: A toupeira depois de escavar um túnel chega a uma trincheira; a prova máxima do progresso da engenharia e arquitetura militar do Grande Século. A toupeira, como Platão, vê a luz que chega ao fundo da trincheira: as botas sujas dos soldados, a lama onde alguns se afundam quando dormem e pensa – Isto sim, isto é do Caralho.

IX.

O índio, com os pés vermelhos de frio, ainda que almofadados: tinha marijuana atada debaixo dos pés – necessário para passar para Os Estados Unidos, os pés almofadados pela erva não deixavam pegadas que podiam ser seguidas pelos guardas fronteiriços. Depois na subida a erva aquecia os pés: como uma pomada. Mas ao entrar no frio, a erva já congelada, os pés vermelhos e inchados andavam sem ordem. Andou até que viu os Neves. Cada um com o seu gorro, mãe e filho. Pareciam só um: Dois braços, dois pés, um gorro às riscas – Alucinação da hipotermia do índio, miragem dos desertos de gelo: um ser –Mãe e filho, um ser único invertido no nervo ótico do índio – Os Neves não perceberam o que o índio dizia / o índio e os Neves: um choque talvez igual ao que sentiram os aztecas ao verem os conquistadores espanhóis montados em cavalos e os conquistadores ao verem os aztecas. Potencialização desta entropia.




Ele não parava de olhar para a estátua de Nossa Senhora, parecia que esperava mais dela do que dos Neves: Até que apareceu a foca entre os dois numa completando uma trilogia rara mas acolhedora pelo silêncio.
Afinidade natural. Agora eram quatro. A foca, o índio, o ferido de guerra e a mãe limpa-neves – Núcleo familiar amplificado. Um – Quatro corações, um novo corpo familiar. …………………………………………………………………………………………...             
  X.

A foca comia menos. A comida racionada para chegar para o índio. Ração reduzida para a foca, menos sobras. Também os ciúmes. Não havia nenhum esforço da parte do índio por cativar a foca, os gestos duros e quadrados (geométricos como o voo das moscas, previsíveis as rotas dos braços do índio no ar) braços quase sempre inertes, musculados os tendões habituados ao sossego e ao trabalho duro de carregador de pedras zapoteca. Afinidade adiada para com a foca, um jogo de resistência. A foca entrava cada vez menos em casa. Desaparecia por muito tempo nas traseiras do jardim (O Pólo Norte todo) às vezes voltava com sangue na boca. Preferia caçar do que sentir-se a mais. Via o índio com o enfoque da posse / O índio apoderou-se do lugar que era dela. Primeiro tinham muitas semelhanças: os Neves (o núcleo primário) não percebiam o índio nem o índio percebia o Neves – Adivinhavam-se os gestos, da mesma incapacidade comunicativa era a relação Neves / Foca e Foca/ índio – A comunicação verbal não servia a não ser para a dupla nuclear: O ferido de guerra e a limpa-neves – Mas uma comunicação viciada pelo tempo e pela relação mãe / filho: falavam pouco e o que diziam um ao outro estava emprenhado de incomunicação – Assim para o Núcleo: os quatro: a comunicação verbal não funcionava e era meramente passiva – Recebida pela televisão e o rádio; palavras que entram e sobre as quais não se discutem. Para hidratar a pele revestida de uma grande capa de gordura oleosa (proteção natural do frio)– Tinha de se afastar muito para a zona de gelo e ali o buraco, ou então o Neves regava-a com a mangueira no quintal – duas vezes ao dia – virava-se (dorso para cima, revirava-se, rebolava na neve – que para as focas é tão árido como o deserto para o coiote) – A Limpa-neves tenta-o seduzir com uma ração melhorada e aumentada, com um redobrar do carinho e o índio que passa os dias a ver televisão: programas da manhã e da tarde, novelas da noite: não entende o que dizem, apenas o prazer visual – as raparigas de mini-saias que dançam e cantam de manhã e à tarde e à noite, e se não dançam no ecrã, o índio muda de canal para outro onde elas apareçam – o índio passou a regar a foca – tentativa de conquista e a foca gostava dos banhos do índio que cantava com a mangueira na mão – Provar a carne da lua – uma canção zapoteca. Assobiava – um dia foi com a foca, era um teste de amizade, ele a caminhar e a foca a segui-lo (amigos agora, teste passado) e o índio abriu com um serrote um buraco no gelo – este buraco ficava mais perto – A foca mergulhou – Veio à superfície (a zona da literatura atual depois dos poços fundos que Freud Abriu). Amizade reforçada e o passeio diário até ao buraco no gelo – banhos cada vez mais prolongados enquanto o zapoteca cantava: caminho de regresso reforçado o prazer, e uma amizade autossustentada – evolução que nunca retrocede – já só pode aumentar. Era este laço que faltava ao Núcleo – agora sim, reconciliação da foca com a limpa-neves e o ferido de guerra, com a casa (abrigo e toca desta família) poupança de água graças ao índio. Um vínculo reforça todos os vínculos, não viver em si, mas habitar a ligação.

O Neves começou a escrever numa sebenta: O título: Memórias de uma guerra que não existiu – Dois dias e a sebenta completa de letras, não saturada de revisões e correções – A sebenta desaparece um dia – apurar culpas, a mãe, o índio, a foca: ninguém sabia da sebenta. O Neves sabia que o índio não gostava que ele escrevesse – sentia-se traído quando ele o deixava sozinho em frente à televisão e ia escrever no isolamento do quarto: subtrair-se à companhia do zapoteca. O Neves sentia isso: não falavam, mas o índio sentia-se seguro, reforçado e complementado com aquela presença ao seu lado no sofá – todo o dia a verem televisão, como se fossem um só – mais do que uma alma gémea, uma só alma: Neves-zapoteca, o comando na mão – a respiração do Neves fazia-lhe falta, era como se fosse a sua respiração, mais a da foca, respiração mais quente aos pés dos dois – quase sempre adormecida pela voz dos apresentadores. Quando o Neves se levantava, o índio sentia-o como uma agressão mais do que um abandono – personalizava esse abandono – como um ataque … e o Neves não se levantava para ir por água, ele ia escrever. isso era uma dupla agressão que o índio não tolerava – Via-se pelo seu movimento nervoso de cabeça que levantava e revirava. O Neves nunca ia escrever sem sentir culpa – Daí quase sempre na sebenta, o tema dos textos era a culpa. Essa mulher personificada por John Milton que nos Paraísos Perdidos abre as portas do inferno, por onde saem os demónios que atacam os primeiros homens – A culpa que abriu o canal de tudo que é mau ao homem, a fêmea que penou até abrir a porta, entalada na garganta do Neves – Poemas de culpa, hinos de culpa, odes de culpa, tragédias de culpa, contos e novelas de culpa, sebentas cheias de uma epopeia da culpa – uma anti-epopeia da vontade / castração do índio ou criação do índio nos seus gestos de desprezo. Desprezo duplo quando o Neves voltava – A pele do índio protegida pelo choque – a respiração não era a mesma – era o índio que escrevia a culpa, criador dos textos de Neves – Dose dupla. O Neves começou a ler os textos à Limpa-Neves, ela sentada e a foca a ouvirem – O índio ia fumar para o quintal, entre a estátua de Nossa Senhora e os três pastorinhos – como um elemento a mais na aparição mariana – O fumo azul que subia entre os cinco.
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XI.

Uma vez o índio teve necessidade de falar … mas o quê? Demonstrar só descontentamento – O Neves levantou-se rápido por uma ideia que lhe veio, a caneta já na mão e o índio: FUCK ! – Desabafo em inglês do índio – paralisia de Neves – descontentamento do Zapoteca que não podia tolerar mais o abandono, desabafo sincero – só vazio na expressão – o zapoteca podia ter dito outra palavra qualquer – a entoação, essa foi a que agrediu – vinda da alma mas dentro do colete de uma palavra: onde é que ele aprendeu aquilo, claro que num filme que viu – mas fuck com pronúncia portuguesa, de tanto ouvir a limpa-neves e arranhado de zapoteca; Expansão da culpa dentro do Neves e voltou para o sofá sem dizer nada, melhor não escrever, melhor não fazer, como Bartleby. Ver televisão, dormir, estar com o índio e a foca – não fazer nada mais do que oferecer a sua companhia ao trio – prolongado na cozinha pela limpa-neves; quatro corações agora que a mãe se senta no sofá, agora que vai começar a telenovela que todos gostam. Uma epopeia do quotidiano corre a toda a pressa na cabeça do Neves, musa negra que o quer afastar do trio, ser um menos, ir escrever: Anulado e reduzido.

XII.

Apaziguamento, o zapoteca mais tolerante e o Neves a escrever – solução, o Neves escreve agora no sofá. Numa semana acaba “Freud e a toupeira”: anti-epopeia de 16 capítulos, ler à mãe, passar a computador a sebenta, o que implica confiança, na transcrição não alterar nada: Pela internet “Freud e a toupeira” chega à Alemanha. Em Berlim DJ Kant abre o documento… Duas semanas de ansiedade da parte do ferido de guerra – Quer já a reação, a crítica de DJ Kant … desesperadamente. Isola-se, anda nervoso. Solução, fazer uma espera construtiva, continuar a escrever… em duas semanas fica pronto: Mugre de la Mugre, grande investimento na novela fragmentada: esvaziamento para a sebenta de tudo aquilo que lhe corria, induções da musa negra com asas negras e pés negros, e outras musas, quem sabe, mais coloridas. Havia esperança nesta história onde os fragmentos comunicavam. Ânsia de comunicação – DJ Kant sem responder. O soldado ferido continua a escrever, a mesma ânsia de Proust, as mesmas olheiras de cansaço, a sede de dizer tudo na última casa antes do Pólo Norte. Mês seguinte, produção quase inumana. Termina: Uma Nação Civilizada; Moinho cerca de água; As frases circulares parecem pedras; As ideias de Vanguarda; O Eclipse e os girassóis; El torito; A sopa dos operários, e Dois Homens das Neves. – Oito novelas em menos de cinco meses; não muito longas, incisivas, de frases curtas, com despreendimento emocional, escritas ali em frente à televisão, mimetizado com o núcleo – Passar a computador. DJ Kant sem responder e o impulso: seguem as outras, um mail para ele com nove anexos: as últimas nove novelas, decisão apressada de que logo se arrependeu porque DJ continuava sem responder ao primeiro. Mas sim, pronto: a obra completa de Neves guardada no seu mail.

XIII.

Literatura marginal – primeiro, o que será isso? Especialização crítica de DJ Kant – Para muitos o melhor crítico literário mundial, reunia todas as características de um Colosso Literário, alguém que está quase sempre a arrebentar: mas aqui o filtro “Crítico literário marginal de literatura marginal”: Para muitos melhor que Harold Bloom, Ricardo Piglia, Roland Barthes: marginal, fronteiriço (aqui implicada a ideia de que existe uma crítica que seria central, académica, científica, e uma margem: DJ Kant, implicada, filtro irreal. Um Harold Bloom de rastas, mas porquê as rastas marginais. O que é ser marginal senão estar completamente no centro, vinculado, vinculado, re-vinculado. Currículo interventivo – DJ Kant tinha aconselhado o suicídio a 6 escritores, no total oito escritores marginais mortos – isto por uma elipse … uma falta de resposta de DJ Kant aos dois escritores, silêncio do crítico visto como uma crítica. Leitura demasiado interpretativa do crítico marginal – No pólo oposto – Criar uma legião indestrutível de astros literários que Kant pôs no Céu: Julian Artl, Violeta de Gand, Maria Puig e Cecília Porto – Hiper críticas acesas, um céu literário. O fascínio que DJ Kant expressava por estes escritores, dez vezes maior do que aquele que Harold Bloom expressava por Shakespeare, do que Barthes revindicava para Camus e Rivardo Piglia para Macedónio Fernandez. E nesta galáxia literária de escritores marginais queria entrar o Neves. Só DJ Kant podia abrir-lhe a porta deste Céu…

XIV.

Praticamente inacessível. Marginal. O mail da ambição: O Neves abria o mail 40 vezes ao dia. Tornava-se ausente, deixava o trio sozinho. Três corações quando podiam ser quatro. Novo hábito reforçado. Os três na sala, saídas da limpa-neves para trabalhar, os três outra vez na sala e o Neves no quarto: abrir mail fechar mail, escrever… cada vez com menos vontade porque não há crítica … à parte da mãe. Acontecimento previsto por Neves em Mugre de la Mugre – A espera como personagem… a musa negra e a espera / relação difícil, em jeito de sinopse… os acontecimentos personagens, os sentimentos também personificados, tudo à escala humana – menos as pessoas – Em Mugre de la Mugre tudo sabe a lixívia fora de prazo em cima de uma campa – Escrito no “Assunto” do primeiro mail que recebeu de DJ Kant… Choque, Impacto que logo se tornou obsessivo, novelo que engorda, obsessão que coalha, um queijo negro de chumbo cozinhado pela musa negra. A espera, mais nenhum mail… neves termina: O Rei Artur e os eurodeputados. Espera construtiva, mas logo a consciência de que terminou uma novela ociosa, vazia de conteúdo. A espera como um hábito, uma rotina de aço: Uma personagem de chumbo, que ele criou, que o Neves esculpiu de um único molde. A falta de resposta de Kant como uma resposta de Kant – Paranoia… Até que o índio se farta e entra no quarto de Neves… Os dois olhos do Neves arregalados. Marginais. Duas bolinhas negras … o ferido de guerra.


XV.

Espera uma resposta do zapoteca, a sua presença forte. Assustadora. Mas nada ( o zapoteca não se mexe, está só ali, como se o tempo tivesse parado, nada, imobilidade máxima, o Neves sente-se com medo: olha para o monitor e tudo está igual … O índio … o Neves … Sente-se drogado (não se sentia assim há mais de vinte anos, colado, o seu olhar colado ao índio, imóvel como uma estátua de cera, a sua cara expressa uma calma absoluta, quase inumana – quase a decisão de se tornar uma estátua … de se mimetizar e assim também colados os dois olhos do Neves. A imobilidade total, entrega, mergulho no sono, cada vez mais fundo e mais fundo – mas com a ajuda da vigília, a vigília máxima: A calma inumana do Zapoteca e a calma inumana do Neves. Já sem espera… O olhar paralisado mas vivo e cruzado onde dançava algo parecido a isto: Passou-nos algo por cima. Passou-nos algo e não vimos: Há uma lágrima que cai dos olhos do Zapoteca.

XVI.

Facto: O Zapoteca estava a dormir. Eram duas da manhã. Sonambulismo, entrou como aparição no quarto do ferido de guerra. Pedido de auxílio dentro do sono. De um segundo para o outro como uma onda que passou no quarto e o índio entrou… Para o ferido de guerra foi como um pesadelo acordado, maximizado por uma vigília extrema, a da espera e a do desespero previsível. Já está tudo bem. Levar o zapoteca a dormir. E já está ali a babar-se na almofada. Dormir, o Neves também e no momento em que está a adormecer sente o deslizar da foca que entra na cama, o focinho que lhe empurra para ganhar espaço ao lado do escritor. DJ Kant no seu quarto em Berlim escreve uma carta para enviar ao Neves.

XVII.

Impossível escrever algo tão vivo. Enquanto o ferido de guerra dorme, DJ Kant escreve, escreve há mais de quatro horas, pausas breves para fumar, cada vez mais reduzidas. Nunca lhe tinha passado isso: confrontado consigo mesmo, DJ Kant, surpreendido por si mesmo, pela vivacidade com que escreve. Prenúncio, a entrada de Neves no céu literário marginal – segundo: Crescendo de interesse (a toda a pressa) do crítico marginal pela literatura marginal do Pólo Norte. O teclar rápido e nervoso enquanto um cigarro se fuma a si mesmo no cinzeiro, esquecido/ rejeitado pelos lábios, pelo corpo, porque todo ele quer escrever a identificação/ a afinidade sincera que sente pelos nove textos que leu na última semana, quase sem sair. Como se uma onda de vontade tivesse passado pelo quarto – escrita automática de uma crítica em ebulição emotiva: Vai já na página 56 – Uma epopeia crítica, uma odisseia de crítica literária – também criação literária, oculta, expansiva. Crescendo Máximo (Como uma Lua com Cio, DJ Kant) acaba, esvazia uma corrente que lhe parecia infinita, mas já, 154 páginas de crítica – O Neves no Céu Literário).

XVIII.

O ferido de guerra está a dormir. A foca entre os braços. Desconhece o que passa nesse quarto m Berlim. Está demasiado longe. Por agora sonha algo que sonha também a Limpa-Neves, e a foca ao seu lado e o índio… sonha algo onde a linguagem não entra. Está longe: Os quatro corações do ferido de guerra, sincronizados, tranquilos. Batimento seguro, supremo, humano. O ferido de guerra: o sonho dos quatro, onde a linguagem não chega.
Quando se desperta quer escrever o sonho. Narrativa dupla que se chama: Os moinhos de Felice.
Conto que a foca, o índio e a limpa neves também sonharam – Termina rápido, abre o mail e vê a carta de DJ Kant. 154 páginas que imprime sem ler em papel de rascunho e logo põe em cima da mesa / adia a leitura, está nervoso e sua. A crítica na mesa da cozinha, e o zapoteca (responsável pelo desaparecimento da sebenta que continha a primeira novela) corta com uma faca a ligação da internet e leva as 154 páginas da carta para o jardim enterra debaixo da neve. A crítica (entrada no céu marginal da literatura marginal). As folhas debaixo da neve ficam molhadas.

XIX.

O zapoteca, no sítio onde as folhas estão enterradas, os pés vermelhos e grandes em cima da neve, os pés quentes que aquecem a neve. Parado como uma estátua, com a única função de que a temperatura dos seus pés faça derreter a neve mais rápido: molhar as folhas mais rápido – não a destruição dos papeis hereges pelo fogo, purificação pelo fogo, as cinzas – não, os pés do índio / só deixar-se estar em pé: não há ação destrutiva – 10 minutos – Enquanto o ferido de guerra procura os papéis… Agora molhados, completamente molhadas / Passaram-se quinze minutos. Os textos molhados e inacessíveis, um bola de água e pasta de papel, as letras tornaram-se manchas.

XX.

A mãe vinha ao longe. Estacionou o limpa-neves, passou a estátua da aparição e entrou em casa, passou a casa e saiu para o jardim (Todo o Pólo Norte). Viu uma bola de amizade autossustentada, bola de neve que crescia nas traseiras do jardim (O Pólo Norte Todo): cada vez maior … os três mamíferos rebolavam. O núcleo: Parecia endireitar o eixo.




[1] Tipo de contrato medieval de arrendamento da terra pelos senhores feudais: por três vidas.


Nuno Brito

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Paraísos Perdidos

O espírito leva em si mesmo a sua própria morada e pode em si mesmo fazer um céu do inferno ou um inferno do céu. Que importa o sítio onde eu more, se sou sempre o mesmo e o que devo ser; se sou tudo, ainda que menor do que aquele a quem o raio tornou maior?



John Milton, Paraísos Perdidos

discurso do Diabo aos anjos caídos no Livro Primeiro.

domingo, 26 de agosto de 2012

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A individualidade é apenas uma ficção breve dentro de uma espécie social.

Michel Houellebecq, O Mapa e o Território

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Jonathan Swift

Sempre odiei todas as nações, profissões e comunidades, e todo o meu amor é dirigido às pessoas concretas...



quinta-feira, 1 de março de 2012

Godard Avant Godard

"Matar um homem para defender uma ideia não é defender uma ideia, é matar um homem"




J. L. Godard, A Nossa Música

domingo, 26 de fevereiro de 2012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O prazer do texto é o momento em que o meu corpo vai seguir as suas próprias ideias – porque o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu



 Roland Barthes: O Prazer do Texto.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Um novo Canal


  

                                                                          

                                                

Era o Sol todo -
Lambia-lhe o sorriso,
Desenhei-a a arder em cima do muro
                        Não contei a ninguém desse incêndio

No helicóptero a caixinha de música:

Três pastorinhos lambiam-lhe as lágrimas de fogo e neve
nos seus olhos vi uma península a tremer
um pulso lácteo entrava na água,
  cor do mercúrio – cortava a vigília em duas noites
um limão – serei a tua amiga – estou atrás dos teus olhos
se vires para dentro - vê para dentro
o sumo corria pela prata: aceso âmbar, boquitas abertas
escreveu em letra redondinha: fumou o sumo, comeu as cerejas
transformou-se em neve de estrelas – encheu-me o depósito
estas sementes serão mulheres
estas sementes vão provar que os géneros mentem
península feita de um rápido desvio de olhares 

a princesa do hiper-gueto trouxe um ramo de rosas vermelhas
mas sem rosas vermelhas
– só caules verdes – e um cartão a dizer que não estava mais em Portugal
Neón girl, fui morar para dentro de ti

Lambem-lhe os veios dos olhinhos, as sombrinhas
 voam da Escócia como corvos
para cima do país que foge – atravessam a Mancha

Toquei nessa memória e fui para lá morar
Memória barco –
Joystick no lugar do leme a rasgar o mar gordo –
só o susto faz mexer os braços do capitão
Levanta o copo de Gin e pergunta ao mar?
e agora que provamos o amor quem nos guia?
E agora com os pés partidos como dança?
O mar nunca responde
do meu lugar não vi a queda
não ouvi o choro dos pólos –

A abelha rainha pousa em cima do disco que gira
As suas patinhas servem de agulha
 e a Abelha muda
Rápido para outra música – O céu é um lugar na terra contigo
Canta Lana del Rey – enquanto a abelha gira em cima do disco
não vi o teu medo, morei só dentro dele

não vi os patins ao fundo
            Passei a semana a pensar começar uma carta – Abrir um canal
                                              
Outra fêmea virá partir as asas de todas as borboletas
Partir as patinhas da Abelha DJ – ir embora desta nação
E o gramofone a girar sem que a Abelha possa agora mudar a canção
Só tocará aquela que nunca dançamos


 Nuno Brito

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A tradução do Rober



Nuno Ramos

1. Manchas na pele, linguagem
do livro Ó (Cotovia - colecção sabiá)

Meu corpo se parece muito comigo, embora eu o estranhe às vezes. Tateio minuciosamente as pequenas saliências da pele, os pequenos pêlos que vão crescendo enquanto caem, e empalidecem, e parecem, aos poucos, cobertos de giz. Embora só consigam crescer em torno do meu queixo e sobre a minha boca, sempre os aparei todos os dias, pois quando não o fazia cofiava, é este o verbo, aquele conjunto unido de pequenos cabelos ininterruptamente, com a voluptuosidade de quem precisasse fumar ou beber ou arrotar, mas parecendo aos demais que adotava uma posição reflexiva e até mesmo irônica, o que não era a minha intenção. Para evitar desentendimentos, desde a primeira adolescência raramente deixei de cortá-los durante o banho, como um inimigo constante que precisasse controlar. Pois bem, quando fiquei alguns dias sem tomar banho e me olhei no espelho, percebi círculos calvos em meu queixo. Os pequenos pêlos haviam caído em rigorosa geometria, como aqueles círculos em plantações de milho, ou trigo, na Europa, Austrália e nos Estados Unidos, que muitos tomam por sinais extra-terrestres. Encontrei ainda, sobre meu lábio direito, um semi-círculo menor, um pouco mais pálido, produto do mesmo fenômeno. Micose? Stress? Fungo? Musgo? - logo alguns amigos diagnosticaram, com aquele devaneio da medicina amadora, e me alegrei com a possibilidade de ganhar a companhia, mesmo que de uma doença, de alguma coisa com nome definido. Mas não perdi o espanto sobre a origem daquilo. Qual gen ou terminal nervoso ordenou que caíssem neste formato circular perfeito? Em que língua interna conversaram? Deixei que crescessem por uns dias, para que pudesse examinar o fenômeno, e digo que com certeza não seriam melhor traçados através de um compasso. À exceção de dois círculos pequenos quase sobrepostos, que tornam difícil o exame de seu contorno comum, pode-se agora perceber claramente cinco círculos perfeitos em meu queixo e um semi-círculo sobre meu lábio superior direito. Parece que a cola da minha pele já não é eficaz e que começo a me livrar dos parasitas que se agarraram todo este tempo ao casco principal – cabelos, unhas, cílios. Fica horrível nos primeiros dias, quando os pêlos ainda não cresceram o suficiente e os círculos se confundem com manchas na pele, pequenos albinismos ou desbotados num linóleo, ao invés de intervalos entre cabelos. Chego a fazer a barba duas vezes no mesmo dia para que isto não aconteça, disfarçando o seu contorno. Mas depois de algum tempo começo a ficar curioso, a querer saber se ainda estarão ali, se há novos círculos ou se trocaram de lugar, ou se a erva lanosa, escura, de meus poucos pêlos teria coberto agora todo o contorno do queixo, e deixo que cresçam novamente, apenas para verificar que continuam iguais.

Há algumas semanas descobri também outra novidade em meu corpo - passei, como um hábito antigo, a mão sobre o osso da canela, procurando um pequeno fragmento que se alojou ali em algum momento da minha infância, conseqüência provável de uma canelada. Este fragmento de osso sempre me fez companhia, arrastando-se, sob a pressão dos meus dedos, 10 cms para cima e para baixo, usando a canela como trilho. Neste dia, para meu espanto, não pude encontrá-lo, não porque tivesse desaparecido, mas porque a própria canela estava agora recoberta, numa extensão de quase um palmo, por uma camada flexível de substância gordurosa, ou cartilaginosa, à qual a pele parecia aderir, como se sua quilha, que sempre fora pontiaguda, agora se arredondasse, recheada. Meu pequeno fragmento ficou, provavelmente, soterrado debaixo desta nova camada, desaparecido para sempre, e junto com ele a sensação de poder tocar o esqueleto por trás de uma fina camada de pele.

Talvez, neste caso, meu espanto provenha de um outro, mais genérico – o de perceber que engordo inelutavelmente, que a camada externa da forma já roliça do meu ventre e das minhas coxas treme quando me movimento, que algumas partes antes contínuas do meu dorso unem-se agora através de almofadas côncavas. E este espanto, por sua vez, talvez venha de um outro, ainda mais remoto – o de que o corpo muda, opera o tempo todo um movimento cuja finalidade apenas a ele pertence. Não que definhe – o meu, por exemplo, agora parece engordar -, mas foge ao nosso controle, às nossas expectativas. É preciso ser bastante minucioso para antecipar suas sutis transformações e perceber como as veias escapam à pressão da pele, como as cavidades e vincos causados pelos movimentos aprofundam-se em largas gretas, como ressecam as bordas da derme, como uma linha genérica, frouxa, vai borrando a linha fina que contornava cada membro. E se parece patética a preocupação constante, em especial entre as mulheres, de isolar e prevenir cada pequena minúcia, é porque estas são infindáveis, como a água de uma represa que rompesse, em pequenas quantias mas por toda a parte e ao mesmo tempo.

Se há, no entanto, alguma dificuldade e esforço na antecipação, enumeração ou aplicação destes efeitos em nós mesmos, poucas coisas são mais evidentes que este amálgama de carne e de tempo quando o percebemos nos outros. Tal percepção nos escapa também relativamente aos que nos cercam todos os dias, como se uma capa de continuidade cercasse a nossa vida imediata. É preciso lançar nosso olhar distraído para alguém distante de nosso afeto e de nossa vizinhança – uma amigo de infância, uma atriz antiga, um ex-jogador, um conhecido de outra cidade ou país - para perceber todo o estrago, e percebê-lo de imediato, espalhado não em um único ou mesmo em diversos aspectos do rosto ou do corpo que observamos, mas nele inteiro, em absolutamente todos os seus elementos. É à totalidade dos aspectos que a passagem do tempo dirige sua fúria. A doença, espécie cataclísmica e apressada de contato com isso, se por um lado sacrifica com violência algumas partes isoladas do corpo, ao menos diversifica esta homogeneidade, como se o rancor gradativo dos anos se concentrasse em alguns detalhes, e se saciasse com isto.

Como todos os processos excessivamente contínuos, é preciso que nos lembremos do envelhecimento de um ponto de vista absolutamente exterior (em frases como “Não tenho idade para”, “Naquela época” ou “Quando eu era menino”) ou, ao contrário, de um interior imediato, muitas vezes corpóreo - na completa falta de ar após uma corrida, no rompimento estúpido de algum músculo. Mas é então, sob a sentença de um envelhecimento inevitável, que alguma coisa em mim parece querer, e poder, sobrevoar meu corpo, livrar-se dele - um misto de olhar para longe e de respiração, um amálgama aflito de palavras, a melodia como porta ou túnel, o instante que cava minha pegada numa paisagem imensa e posso então devorar nas plantas a sua carne amarga e lançar meu pêlo molhado sobre a minha vítima. Mas esta alegria progressiva precisa de alimento constante e o próprio corpo, em sua casca, parece não resistir bem a ela, tornando-se inquieto, ofegante e, aos poucos, cansado e deprimido. Como um balão cujo gás vai escapando, a energia insana de nossa alegria física procura abrigo - nas imagens, nos braços de outra pessoa e, no limite, pois é a isto que sempre recorre, na linguagem. É ali que a tentamos prender, antes que o gás escape de uma vez e sejamos tão somente os espectadores de nossa própria decrepitude, de nossa fusão indeterminada na matéria.

Chegamos então à beira do velho precipício - o entusiasmo das palavras vagas. É a este antigo último recurso que recorremos sempre – exclamações ou frases compulsivas que não conseguimos deixar de dizer. Talvez seja melhor tratar agora desta estranha ferramenta, a linguagem, que me põe para fora do meu corpo - tentar apreendê-la, indeciso entre o mugido daquilo que vai sob a camisa e a fatuidade grandiosa de minhas frases. Sem conseguir escolher se a vida é bênção ou matéria estúpida, examinar então, pacientemente, algumas pedras, organismos secos, passas, catarros, micro-organismos onde a vontade é una, pegadas de animais antigos, desenhos que vejo nas nuvens, cifras, letras de fumaça, rima feita de bosta, imensidão aprisionada numa cerca, besouros dentro do ouvido, fosforescência do organismo, batimento cardíaco comum a vários bichos, órgãos entranhados na matéria inerte, olhando a um só tempo do alto e de dentro para o enorme palco, como quem quer escolher e não consegue: matéria ou linguagem?

Como uma via intermediária, procuro entrar e permanecer no reino da pergunta – ou de uma explicação que não explica nunca. Assim, suspenso, murmuro um nome confuso a cada ser que chama minha atenção e toco com meu dedo a sua frágil solidez, fingindo que são homogêneos e contínuos. Posso, até mesmo, anotar em meu caderno características do que toco, como: “pinta-se de verde antes de reproduzir”, “mostra extrema ansiedade antes do ocaso”, ou “destila o breu dos carvalhos ao redor” mas não vou jamais, em hipótese alguma, regredir à cadeia causal interminável, como um cachorro mordendo a cauda. Não preciso agora morar no deserto nem comer gafanhotos, apenas me conformar com uma vaga e humilde dispersão dos seres, fechados não exatamente em seu segredo mas em seu desinteresse e incomunicabilidade de fundo. Como um modelo mal ajustado ao modelado, permaneço em meu torpor indagativo, deitado na relva, tentando unir pedaços de frases a pedaços de coisas vivas.

Pois todos concordam que quando se deixa o abrigo minucioso da própria carcaça, quando se vai além da constatação – isto dói, este pêlo cresceu – de sua própria e monótona arquitetura, é preciso criar, porque isto com certeza ninguém nos deu, uma ferramenta –uma linguagem-, um pedaço de pau com anzol na ponta, até o outro lado. É aí que tudo se complica, pois a única pergunta que realmente interessa é: de que é feita esta ferramenta? Se fosse possível, por exemplo, estudar as árvores numa língua feita de árvores, a terra numa língua feita de terra, se o peso do mármore fosse calculado em números de mármore, se descrevêssemos uma paisagem com a quantidade exata de materiais e de elementos que a compõem, então estenderíamos a mão até o próximo corpo e saberíamos pelo tato seu nome e seu sentido, e seríamos deuses corpóreos, e a natureza seria nossa como uma gramática viva, um dicionário de musgo e de limo, um rio cuja foz fosse seu nome próprio. Mas é com nosso sopro que nos dirigimos a tudo, com a voz que o frágil fole da garganta emite, com o hálito que carrega nossas enzimas, é com o pequeno vento de nossa língua que chamamos o vento verdadeiro. Mais do que comer, correr ou flechar a carne alheia, mais do que aquecer a prole sob a palha, nós nos sentamos e damos nomes, como pequenos imperadores do todo e de tudo. Uma mulher dirigiu seus passos ao poente e sumiu; sabem o que fez aquele que ela abandonou, enquanto fitava o poente com os olhos cavos? Ele grunhiu, e este grunhido virou o nome da desaparecida. Ele lhe deu um nome, ele ganhou seu nome, como um coágulo, uma retenção daquilo que passava, confuso, por ele, um poente paralelo ao poente diante dele.
Pois se circula em toda a natureza um halo de inexpressividade – por exemplo, nas feições impassíveis com que o sapo é devorado pela cobra, como se levemente espantado (e por isso arregala os olhos) com o que está lhe acontecendo, ou quando a louva-a-deus devora calmamente a cabeça de seu macho, como um pequeno galho de bambu, enquanto copula com ele - é porque nada ali precisa ser comunicado, arrastado que está pela própria e intensa atividade. Apenas a nós, que trocamos tal fluxo pelas finas modulações da voz, que entre todas as matérias internas e externas, entre todos os sólidos, os musgos e as mucosas, entre o que voa e o que afunda, entre o que plana e o que nasce do apodrecimento, selecionamos apenas a voz e o vento, organizados em acordes, para tomar por mundo, apenas a nós é dada a labuta das expressões faciais e dos gestos, apenas em nós a dor parece alhear-se numa expressão, facial ou lingüística. Pois afirmo que mesmo aí, quando recebemos a mordida de nosso assassino, quando a patada do felino nos alcança pelas costas ou o veneno de uma serpente aos poucos nos faz dormir, mesmo aí mentimos, e fabricamos com nossa cara um falso duplo para nos poupar.

Fico imaginando quem, com a mão ferida, por exemplo, não se deixou morrer nem tentou viver, mas exprimiu a sua dor. Como teria convencido os demais a interessar-se por isto? Por que não ficou para trás, isolado, com suas interjeições? A única resposta é que a linguagem só poderia nascer e adquirir eficácia numa situação em que todos, ou uma grande maioria, estivessem doentes ou muito enfraquecidos, tornando-se então uma moeda de troca, uma comunhão na doença, e aí sim, se entre eles houvesse alguém sadio que fizesse ouvidos moucos àqueles gritos, alguém desatento à estranha ladainha, então os doentes, em grande maioria, teriam reunido forças para matá-lo ou expulsá-lo. E uma vez curados já não saberiam competir sem este estranho mecanismo, que foram aperfeiçoando cada vez mais.

Mas talvez não importe tanto fabular sobre a origem da linguagem quanto compreender a enorme cisão que ela causou. Pois uma vez amarrada esta corda entre todos, uma vez expulsos ou mortos aqueles que não quiseram valer-se dela, não há mais qualquer possibilidade de retorno, pois é próprio da mais estranha das ferramentas, da mais exótica das invenções (a linguagem), parecer tão natural e verdadeira quanto uma rocha, um cajado ou uma cusparada. Este é seu verdadeiro fundamento, sua, digamos, astúcia - a de substituir-se ao real como um vírus à célula sadia. Há aí uma potência de esquecimento que não pode ser diminuída, uma armadilha na agonia que serviu a alguns (e não a todos), sacrificando violentamente aqueles que não a utilizaram.

Restam hoje apenas algumas pistas desta origem ou, para dizer de outro modo, alguns sinais fora da linguagem. Parece uma experiência cotidiana, ainda acessível a todos, estranhar subitamente o som de determinada palavra como demasiado abstrato ou inverossímil em relação àquilo que designa, e o velho jogo infantil de repetir indefinidamente um mesmo vocábulo até que perca completamente qualquer ligação com aquilo que procura indicar talvez queira nos conduzir, apenas, de volta a uma época em que cada coisa tinha seu peso sinestésico, e tanto a cor como o sabor como a imagem eram o índice livre para aquele pássaro flechado. A própria diversidade de línguas, absolutamente cômica para quem as escuta sem entender, remete também à arbitrariedade de origem, a esta reunião primeva de feridos em busca de consolo e proteção que expulsou para longe, ou mesmo matou, os primeiros heróis mudos. Quando entramos em choque com algo inaceitável ou excessivamente belo e ficamos, literalmente, sem palavras, estamos recuperando esta etapa adormecida da nossa natureza.

O problema, no entanto, é que mesmo então, por vício de origem, queremos comunicar o que está acontecendo. E para isto precisamos dela, e tudo recomeça novamente. Há aqui uma astúcia ainda mais escondida, que precisa de explicação. Voltemos à comunidade dos doentes. É claro que, passada a epidemia ou passadas as conseqüências de algum cataclisma ou ataque, os doentes vão aos poucos tornando-se sãos, ganhando de volta a antiga confiança e desprezando aqueles sinais coletivos acumulados nos últimos tempos. Querem agora retornar à existência nômade, à barca forrada de peles que os leva rio abaixo, entre animais e pomos dourados. Por que não o fazem? Por que não retomam sua condição e seguem os passos daqueles que expulsaram? Porque já não podem, contaminados pelo novo vírus? Talvez, mas o mais provável é que tenha sido por temor àqueles que expulsaram. O irônico disto tudo é que o instinto de algum modo coletivo da linguagem só pôde desenvolver-se ao transformar em vítimas os primeiros heróis mudos. É o anel de seu exílio, circundando os novos povos falantes (como Polifemos em torno da gruta de Ulisses), que preservou a linguagem, tornando-a imprescindível à sobrevivência.

Talvez estes heróis mudos, que nunca exprimiram dor, rancor nem pasmo diante da natureza, organizando-se em núcleos extremamente isolados, tenham se distanciado cada vez mais das comunidades onde grassava a linguagem, que temiam, enfrentando as adversidades a seu modo, sem qualquer previdência. Cercados por seus antigos pares, que agora já plantavam e caçavam com armas muito mais refinadas do que as suas, devem ter provado da melancolia e da tristeza que têm as vidas em extinção. E devem ter provado disso integralmente, em seus próprios ossos, na aspereza de sua pele, sem a anestesia das palavras. E o último deles, ao morrer sozinho, terá lançado àqueles estranhos seres falantes, que já lhe tomavam a gruta, uma terrível maldição calada. O enigma deste rancor, que paradoxalmente não chegou a ser exprimido em sons articulados ou gestos reconhecíveis, açoda de perto todas as línguas vivas ou mortas, amaldiçoando o seu pacto de origem.

Talvez esta maldição tenha se abrigado em nosso próprio corpo, em seu mal-estar entranhado e inexprimível, em sua carga desarticulada de dor e de sofrimento, de tal forma inconcebível que os próprios narcóticos tornam-se legítimos, em doses medicinais de morfina apaziguando o que vai além das palavras. Neste momento de dor cega igualamo-nos a nossos antigos primos mudos: nosso corpo é quem de algum modo fala, pelas mãos crispadas ou pela boca contorcida, mas não a nossa língua, que regride e geme e grunhe ou, no máximo, grita. Assim, todo o arco se fecha, e quem traiu por fraqueza o incêndio dos olhos na beleza, quem matou o azul cerúleo ao inventar seu nome, agora tem de volta, na dor de próprio corpo, a antiga coincidência negada, e pode então unir-se ao fluxo de tudo. Sim, este seria um consolo para o rei silencioso que morria: saber que a dor não se duplica, que não há signo para a doença e que o corpo, o corpo profundo, continua inexplorado e mudo.

Neste ponto, há uma conclusão algo paradoxal que se impõe – será que não fizemos tudo ao contrário ao duplicar o poente e a cor do mar sem que isto sirva em nada para nos poupar da dor física verdadeira? Não seria melhor uma linguagem que servisse apenas para iludir a rebelião e o mau funcionamento do corpo, de forma que nossa relação com a febre alta, a dor de dente ou a cólica pudesse, agora sim, ser apaziguada ao pronunciarmos o nome de nossa doença? Então para algo serviria. Mas parece que dirigimos, ao contrário, nosso esforço à parte livre e não lingüística de nossa relação com o mundo, poupando a parte pânica, corpórea e dolorida – ali não há linguagem e é justamente quando mais precisamos dela. Ao olharmos um par de olhos, ao percebermos o movimento brusco, em xis, do rabo de um lagarto, nada deveria estimular nosso cérebro a comentar a sua cor ou a rapidez daquele movimento. Deveríamos passar com estes acontecimentos, e sua imensidão nos tomaria, deixando-nos vazios até que o próximo objeto nos chamasse a atenção. É da morte, da velhice, da perda de contato que a linguagem deveria se alimentar. Sou capaz de aceitá-la para a proteção de nosso corpo, para tornar nossa morte amena, espécie de anestésico natural, como as toxinas que alguns animais liberam para não sentir que estão sendo devorados. Mas é o contrário que se dá: morremos quietos, ou aos berros desarticulados, mas vivemos o esplendor da saúde de nosso corpo cercados por vocábulos que, à primeira chance, saltam à frente e roubam minuciosamente nosso dia.

Para terminar, há uma última hipótese que quero examinar. Vim considerando que os primeiros homens teriam se dividido entre seres lingüísticos e heróis mudos, e que os últimos, isolados e pouco gregários, teriam sido extintos. Mas não consegui descrever sua mudez, em tudo diversa da dos bichos. De que era feita? Tinham os olhos cheios, concentrados, pareciam sempre ocupados, distraíam-se? O que lhes preenchia os dias, além das tarefas básicas? Talvez, ao contrário do que viemos postulando, fossem seres radicalmente lingüísticos, a ponto de que tudo para eles pertencesse à linguagem. Cada árvore seria assim o logarítimo de sua posição na floresta, cada pedregulho parte do anagrama espalhado em tudo e por tudo. Mover-se-iam entre alfabetos físicos perceptíveis aos seus cinco sentidos (e ler talvez constituísse um sexto, que reunisse e desse significado aos demais), e cada cor seria música e cada música seria mímica, e cada gesto seria um texto. O desenho das linhas de suas mãos seria parte deste enorme texto; o sangue do cervo que derrubaram; os fios do pêlo que os aquecia. Em tudo liam, nas nuvens e no hálito, no dorso de um mamífero, na luz de um inseto que já morreu, na textura dos troncos e no seu limo, no desenho do vôo de um besouro, no vasto bigode de uma morsa - e no som que grunhiam, no cuspe que cuspiam, nos olhos que piscavam e no número dos seus dias. Tudo parecia escrito para eles e bastava que tocassem um corpo de pedra ou de carne para que o enorme livro se abrisse e mais uma linha fosse escrita. Todo o acontecer parecia parte desta página, reescrita a cada momento, todas as mortes, os pios, cada gota, cada sal.

A única restrição deste texto dissipado por tudo era ser feito de matéria física, mutável e perecível. Toda matéria aceita um grau bastante alto de metamorfose, mas há um limite depois do qual não é mais reconhecível. Talvez um grande cataclisma - um terremoto, um meteoro ou um incêndio –tenha transformado a tal ponto a matéria que os cercava que acabou por emudecer para sempre este texto físico, obrigando à sua substituição. Isolados em seu próprio corpo, que já não parecia parte desta escrita única, tiveram de usar a matéria mais leve e de fácil manuseio de que dispunham (a voz), e substituir com ela o que haviam perdido. Procuraram então marcar, para cada coisa que sumira, um som próprio, que a substituísse e presentificasse, ainda que de modo incompleto. Preferiram esta frágil duplicação à perda que haviam sofrido. E assim, por precaução, nunca mais atribuíram matéria à linguagem, mas apenas vento e signos sem matéria. Com isto, não corriam mais perigo. Traziam em seu próprio pulmão e memória toda a riqueza e diversidade de que antes faziam parte.

Fico imaginando o que teria acontecido se tivessem desafiado o cataclisma e construído uma linguagem com os restos da antiga, calcinada. Se ao invés de tornarem-se ventríloquos das coisas tivessem transformado as próprias cinzas, a terra deserta, o mau-cheiro de tantos bichos mortos, expostos ao céu e à risada das hienas, se tivessem transformado as próprias hienas em sujeito e predicado de seu mundo moribundo? Se tivessem a coragem de escrever e falar com pedaços e destroços? Então seriam parte deste caos, desta correnteza de lava e de morte mas trariam a cabeça erguida, seus passos teriam o tremor do terremoto que os aniquilou e sua risada a potência do vento lá fora.