segunda-feira, 22 de abril de 2024

E Depois?

E depois?

Queria contar-lhe a história do burro que foi à lua. Mas queria contar rápido, em pouco tempo, seria por breves atalhos, o primeiro burro a chegar à lua. Chegaria num foguetão e depois adormeceríamos com o sorriso de uma missão comprida, com um ponto final a pautar mais um dia preenchido de altos e baixos. Mas as crianças não se deixam enganar, raramente gostam de finais felizes, que são mais uma fantasia de adultos. Na verdade as crianças não gostam de pontos finais e para que a história não acabe põe pontos de interrogação em tudo, pontos de interrogação de várias entoações e cores, para  que a história não termine nunca, uma cegonha numa torre fica com um ponto de interrogação no cimo da sua cabeça, um telefone, uma estrela, um sapo, tudo encimado com a entoação perfeita de uma pergunta feita por uma criança; por isso talvez só elas saibam, com uma certeza interrogativa, que na verdade as verdadeiras histórias não têm fim. E todas elas cabem dentro de si, (aninhadas, ouriçadas e pequeninas), como um novelo feito de uma luz finíssima, uma luz de espuma e espanto e ouro, e que puxada devagar com os dedos por uma ponta nunca mais chegaria ao fim. 
Para nos encher continuamente de surpresa as crianças sabem que aquilo que, no fim de cada história, parece um ponto final, é na verdade apenas um ponto de luz que vibra, uma semente recheada de futuro.  E os pontos  finais começam a falar baixinho; ao coração de cada criança do mundo cada ponto final diz: “Leva-me pela mão a casa da minha avó”, “quero comer marmelada”, “Conta-me mais sobre o lobo”, “Podemos ir pelo caminho mais longo?”. Cabe-nos então levar a história pela mão para onde ela quer que a levemos, ou que seja ela a levar-nos a nós, como pequenos irmãos de mãos dadas, as histórias abraçam-se e quando se tocam umas nas outras tornam-se infinitas, como uma grande nuvem de estorninhos ou uma grande história mãe, feita com a voz de todos nós e a voz dos que nos seguirão.  Porque as histórias não têm fim, o meu coração enche-se de felicidade só de imaginar... O que aconteceria ao burro?  E a cada ramo em curvas da sua história? Agora mesmo está no cimo de uma montanha ao lado de um moinho; e é bom ser um burro lado de um moinho em cima de uma montanha e ser um moinho com um burro ao lado mais a montanha que lhes serve de chão e ser isso tudo ao mesmo tempo é também o começo de uma história que está sempre no presente: como quando o molho das rabanadas se cristaliza em ponto de açúcar, assim se sentia o burro enquanto descia a montanha. Muito, muito feliz, como um burro pode ser. O burro mais feliz do mundo descia a montanha, muito devagar, porque há tempo de lá chegar. O caminho tem muitas curvas e devemos sujar-nos o caminho todo. Isso é também o coração da história: devemos sujar-nos porque o caminho é uma aprendizagem. E depois?  ... A pergunta impõe uma nova respiração. Uma respiração segura ... ... ... E quando respiramos ouvimos. Devemos, quando contamos uma história, parar várias vezes: ouvir a nossa respiração e o coração de quem está à nossa frente. Ouvir o nosso coração         a bater no coração de quem nos ouve, dizer: “Olá liberdade!” muito baixinho ao coração de cada ser que nos que está à nossa frente; só assim a história pode nascer, que é a única forma possível de ela continuar, e talvez sejam já dois burros a descer a montanha por um caminho de terra e  cheio de curvas, e nunca chegar  à lua é só o centro exato da história, porque as verdadeiras histórias estão sempre no meio e não  têm passado nem futuro, nem começo nem fim nem pressa. As verdadeiras histórias estão sempre no presente. Por exemplo, agora, neste exato momento, os dois burros descem a montanha e a certa altura aparece um foguetão e a avó de um astronauta que gosta muito de marmelada. ...  E depois? ... ... 

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Art Objects: Jeanette Winterson



The earth is not flat and neither is reality. Reality is continuous, multiple, simultaneous, complex, abundant and partly invisible. The imagination alone can fathom this and it reveals its fathomings through art.
The reality of art is the reality of the imagination.

Jeanette Winterson. Art [Objects]. New York: Alfred A. Knopf, 1996.

 


sábado, 18 de novembro de 2023

Messenger: Mary Oliver

My work is loving the world.

Here the sunflowers, there the hummingbird-

Equal seekers of sweetness.

Here the quickening yeast; there the blue plums.

Here the clam deep in the speckled sand.


Are my boots old? Is my coat torn?

Am I no longer young, and still not half-perfect? Let me

Keep my mind on what matters,

Which is my work,


Which is mostly standing still and learning to be astonished.

The phoebe, the delphinium.

The sheep in the pasture, and the pasture.

Which is mostly rejoicing, since all the ingredients are here,


Which is gratitude, to be given a mind and a heart

And these body-clothes,

A mouth with which to give shouts of joy

To the moth and the wren, to the sleepy dug-up clam,

Telling them all, over and over, how it is

That we live forever.


Mary Oliver.


Emily Dickinson


To the faithful absence is condensed presence.

 To the others—

but there are no others



Emily Dickinson. Letters to Susan Dickinson.

Eu, o Povo: Mutimati Barnabé João



Eu, o Povo

Conheço a força da terra que rebenta a granada do grão

Fiz desta força um amigo fiel.

 

O vento sopra com força

A água corre com força

O fogo arde com força

 

Nos meus braços que vão crescer vou estender panos de vela

Para agarrar o vento e levar a força do vento à Produção.

As minhas mãos vão crescer até fazerem pás de roda

Para agarrar a força da água e pô-la na Produção.

Os meus pulmões vão crescer soprando na forja do coração

Para agarrar a força do fogo na Produção.

 

Eu, o Povo

Vou aprender a lutar do lado da Natureza

Vou ser camarada de armas dos quatro elementos.

A tática colonialista é deixar o Povo ao natural

Fazendo do Povo um inimigo da Natureza.

 

Eu, o Povo Moçambicano

Vou conhecer as minhas Grandes Forças todas.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Três Poemas de Afectos em Ré Menor. Maria Fernanda Morais.




No fundo dos mais belos olhos

eu vislumbro o redondo planeta

mãos que se abrem e deixam nascer

em cada falange um poeta

no fundo dos mais belos olhos

as balas serão palavras

e armas serão canetas

apontadas por poetas

no fundo dos mais belos olhos

não há medo nem terror

as letras são inocentes

cada verso uma flor


***


Dei um beijo

A um beija-flor

Pôs a flor na lapela 

Voou e fugiu de mim

Desgostosa eu chorei

Desamparada caí

Outra ave abraçou-me

Beijou-me o bem-te-vi!

Se virem duas aves felizes por aí a esvoaçar, a dar às asas pelo ar,

somos nós, vamos para Taipus-de-Fora!


***


Partilhemos o canto das aves

nas sombras dos jacarandás

o antes e o depois

do verão e do inverno

o meu abraço terno

aos plantadores das árvores

troncos plenos de flor

que nos dão o colorido

ao cego e ao mendigo

perdidos 

de amor 


Maria Fernanda Morais. Afectos em Ré Menor. A Casa do Livro, Janeiro de 2022.